"O Governo russo não sabe o que fazer com a herança da revolução de 1917"
Em Moscovo, ninguém saberia que se assinala este ano o centenário da Revolução de Outubro, diz o académico Stephen Lovell, que dá uma conferência em Lisboa esta semana sobre o tema.
O professor de História do King’s College Stephen Lovell está hoje em Lisboa onde dá uma conferência no Centro Cultural de Belém sobre o centenário da Revolução de Outubro de 1917. Lança uma pergunta provocatória: “A revolução russa acabou?” Diz que o valor atribuído à revolução que permitiu a fundação da União Soviética se foi perdendo com o tempo e com as mudanças políticas. Hoje, o Kremlin é liderado por um homem com horror a revoluções. O historiador não acredita que o momento venha a ser usado para mobilizar a oposição, a poucos meses das eleições presidenciais, porque o actual regime “é muito eficaz a negar o espaço público”.
O título da sua conferência é uma pergunta que eu lhe repito. A revolução russa acabou?
O ponto de partida foi o paralelo com a Revolução Francesa e com a frase de François Furet, que na altura foi uma declaração muito controversa. Acho que o que motivou a minha curiosidade sobre a revolução de 1917 é o pouco que se discute na Rússia hoje em dia este período. Estive recentemente em Moscovo e não se sabia que esta data estava a chegar. Em Londres é possível saber: há várias exposições, conferências. E acredito que seja assim em grande parte das cidades europeias. O Governo russo não sabe bem o que fazer com a herança da revolução. Há dez anos introduziram um novo feriado, o Dia da Unidade Nacional, a 4 de Novembro, que é apenas a três dias do 7 de Novembro [data da Revolução de Outubro]. Os temas parecem ser a reconciliação, não querem insistir nas discordâncias que existiam no passado. Também tento perceber como foi interpretada a revolução nos primeiros anos e décadas que lhe sucederam, tanto no Ocidente, como na Rússia, no Leste e no mundo em desenvolvimento. A revolução russa teve um grande impacto na China e noutros países.
Quão profundo é o desconhecimento na Rússia em relação à revolução?
Não é que as pessoas desconheçam, mas as gerações mais jovens têm um conhecimento menor. Os mais velhos, os que têm mais de 40 anos, não podem não ter consciência da revolução, uma vez que viveram durante um período em que era inevitável ouvir falar dela. Só que as pessoas escolhem não falar muito disto. Muitas vezes é dito que este foi o acontecimento mais relevante do século XX.
Concorda com a tese de que seria inevitável uma revolução na Rússia imperial?
A I Guerra Mundial foi um factor muito importante. Essa tese da inevitabilidade aplicar-se-ia numa realidade em que a guerra não existisse? Se fosse esse o caso, não é certo que a Rússia seguisse o caminho da revolução. Penso que é muito óbvio que, no início de 1917, o regime estava com muitos problemas. As razões para isso estavam muito ligadas à guerra. A elite dirigente estava a perder a moral e o sentido de dever, e muito do sucesso da revolução se deveu à falta de vontade desta elite em defender-se a si própria. Mas como em qualquer revolução há sempre um elemento de incerteza até que acontece mesmo. Pode imaginar-se uma realidade alternativa em que não exista guerra, em que o czar é forçado a fazer mais concessões do que aquelas que já tinha feito. Mas com a forma como a guerra se estava a desenrolar seria difícil imaginar que o Governo conseguisse resistir, especialmente pelo modo como estava organizado, com uma grande divisão entre o czar e o resto dos ministros.
Uma das questões mais controversas é qual o verdadeiro apoio popular em torno dos bolcheviques nas vésperas da revolução. Cem anos depois, ainda é importante continuar este debate?
Há muito tempo que a teoria de que isto foi uma conspiração que partiu de um grupo reduzido já não tem sustentação. Os bolcheviques conseguiram apoio muito rapidamente, em particular durante a segunda parte do ano. Também tiveram sorte em vários aspectos. O movimento de contra-revolução desacreditou-se totalmente com o Governo provisório de Kerenski e na sequência da rebelião de Kornilov, no final de Agosto. Os bolcheviques tinham também mensagens mais simples e categóricas do que todos os outros seus rivais da esquerda. Claro que falamos apenas da esquerda, porque a direita tinha sido completamente obliterada pela Revolução de Fevereiro. Tinham uma resposta para a guerra — que era sair; tinham uma resposta para a terra; acima de tudo tinham uma resposta para a questão da justiça social. É claro que estas respostas eram fáceis de dar antes de se chegar ao poder. Assim que chegaram ao poder e enfrentaram o desafio monumental de reerguer este país enorme, tiveram de recuar na maior parte dessas promessas. Mas os bolcheviques também perceberam o poder das individualidades políticas Lenine e Trotski. Num certo sentido, é difícil imaginar a Revolução de Outubro sem Lenine ou sem Trotski. Mais ninguém era corajoso, ou louco, o suficiente para a levar a cabo. Em Outubro não havia verdadeiramente um governo e tomar o poder era, num certo sentido, a parte mais fácil. A razão por que ninguém o fez foi porque os partidos consideravam arriscado tomar o poder naquela altura, uma vez que a partir desse momento seriam um alvo a abater e não iriam conseguir manter-se de pé. Portanto os bolcheviques tinham certamente poder nos círculos que interessavam, pelo menos a curto prazo. Tinham o apoio dos operários e dos soldados de Petrogrado, onde a mensagem antiguerra era cada vez mais bem recebida. É também importante ver que a comunicação política num tempo como esse era muito dispersa, as pessoas eram pouco informadas, muitas vezes analfabetas, e, portanto, a militância partidária era muito fluida. Nestas condições, houve o potencial para os bolcheviques aproveitarem a onda popular. Eles arriscaram e foram bem sucedidos.
Em que ponto está hoje o Governo russo perante eventuais comemorações do centenário?
A revolução foi-se tornando cada vez menos importante ao longo do tempo, mesmo durante o período soviético. Foi a II Guerra Mundial e a vitória sobre a Alemanha nazi que se tornaram no suporte da identidade nacional soviética. Mas a Revolução de Outubro continuou um grande fenómeno, de qualquer forma. As principais comemorações foram os 50 anos da revolução, em 1967, e o centenário do nascimento de Lenine, em 1970. Mas, ao mesmo tempo, a comemoração da II Guerra Mundial consolida-se como o principal acontecimento a partir dos anos 1960, cresce nas décadas seguintes, perde força nos anos 1990, mas regressa em grande com Putin. Há uma tendência para dizer que o “ano zero” da União Soviética é 1941. Não se trata de uma forma de negar as coisas terríveis dos anos 1930, porque tanta coisa foi revelada durante o período de Gorbatchov que é impossível negá-lo. Mas a ideia é não falar de mais sobre isso, para além do necessário. O mesmo se passa com a revolução: não há uma moral da história muito clara. Já a moral é muito mais óbvia com a II Guerra Mundial. Há um pequeno paralelo com o tratamento diferente dado à I Guerra Mundial e à II no Reino Unido. A II Guerra é uma luta totalmente justificada que acabou em vitória, enquanto a I Guerra, por todo o sacrifício humano que trouxe, é muitas vezes vista como fútil, uma carnificina que poderia ser evitada. Não acho que a revolução seja uma fonte óbvia de orgulho para os russos. A moral não é necessariamente negativa, mas também não é automaticamente positiva.
Tem alguma ideia da forma como este período é ensinado nas escolas russas?
Não sei como a revolução é ensinada. Mas os manuais que já li, mais virados para estudantes universitários, não ignoram os acontecimentos dos anos 1930, embora o grande foco seja para a narrativa da II Guerra Mundial.
De que forma é que as histórias individuais dos russos que se recordam da União Soviética entram em choque com a narrativa oficial?
Muitas vezes a história oficial e a história individual estão interligadas. Pensando na geração que está agora com 70 ou 80 anos, terão sido crianças durante a guerra, portanto cresceram com o mito e interiorizaram-no. É claro que há histórias do pós-guerra de muito sofrimento, especialmente entre as minorias étnicas que foram deportadas para a Ásia Central, como os polacos e os alemães, e outros que foram deportados para o Báltico. Havia também uma grande dose de secretismo forçado, mesmo ao nível familiar. Não se falava tanto como se pensa, em parte por ser perigoso, mas também porque havia um bloqueio psicológico. Há a noção de que os russos não tiveram uma avaliação própria e colectiva daquilo que foi o estalinismo. A taxa de popularidade de Estaline tem crescido nos últimos anos e está agora em níveis superiores ao período anterior à queda da URSS. São coisas que aconteceram há muito tempo e é necessário tratar-se de uma família muito particular para que essa memória não tenha sido contaminada pela narrativa oficial.
Irá haver algum tipo de comemoração oficial do centenário na Rússia ou será abertamente ignorada?
Penso que não pode ser totalmente ignorado. Diria que o tema principal será a unidade nacional e a reconciliação. Tivemos esta revolução, lutámos uns contra os outros na guerra civil que se seguiu, mas isso foi ultrapassado. A história dos últimos cem anos será a da formação de uma nação. Este é um momento em que a Rússia é, pela primeira vez na sua História, um Estado-nação, depois de séculos e séculos em que foi um império. Tenta agora ser um país “normal”. Mas não pode ser normal, porque é a Rússia, porque é enorme, tem uma herança de superpotência e tem a importância geopolítica que sabemos.
A revolução pode ser aproveitada de alguma forma pela oposição para se fazer ouvir?
Diria que é pouco provável. Neste momento, o regime está relativamente estável, tem uma popularidade elevada e é muito eficaz a negar espaço público à oposição. Essa tem sido a tendência dos últimos anos desde os últimos grandes protestos em Moscovo, que assustaram realmente [o Presidente] Vladimir Putin. Não creio que haja oportunidade para grandes manifestações da oposição, mas não seria a primeira vez que eu me enganaria ao tentar prever alguma coisa na política russa.