“Com que direito se apagam as crianças não-brancas dos manuais?”
Do ensino básico à universidade. “O problema é que o conhecimento que transmitimos é racializado, mas não o vemos como tal”, diz investigadora que analisou livros escolares.
No Portugal dos Pequenitos, o colonialismo não acabou. Esculturas de homens negros de lábios vermelhos e enormes, sem roupa, representados como se fossem primitivos, estão em grande plano. Nas lápides de entrada, o texto fala em missão civilizadora, culturas pouco avançadas, descoberta de países, toda uma forma de contar a História à imagem do Estado Novo, período em que foi inaugurado este parque temático (1940). As crianças que o visitam reproduzem-no: “Aprendi que Cabo Verde já foi de Portugal. Outros países africanos, também”, diz ao PÚBLICO uma menina de visita. Portugal foi “descobrir o mundo e alargar o império”, comenta outra jovem, de forma entusiasmada.
Dias depois em Lisboa, em pleno centro histórico, Nina Vigon Manso abre livros da escola primária da filha de oito anos e refere passagens que veiculam o mesmo tipo de narrativa. No ano passado, fez queixa de um manual escolar por identificar conteúdos racistas, depois de a própria filha a ter alertado — era um poema que dizia: “H é a Helena, é preta, diz que é morena.” Explica: “A palavra preta é uma maneira de ofender, é um estigma e é utilizada como arma de arremesso”, comenta. A forma como está articulada a frase de que ela “é preta”, mas “diz que é morena”, sugere que o narrador a “está a desmascarar”: “Ou seja, a criança deduz que as pessoas pretas não são de confiança.”
Investigadora em Ciências Agrárias, Ciências do Consumo e Alimentação e cientista social, Nina Vigon Manso critica a forma como a relação entre “o eu e o outro” é representada nos manuais: “A pessoa central é sempre a criança branca que está a mostrar o seu mundo. Num dos livros há a imagem de um menino loiro que viaja por vários sítios e vê crianças claramente estereotipadas e depois as desenha, ‘validando-as’.” Interroga: “Quando é que vai começar a acontecer serem as outras crianças a falar?”
Num outro livro de Estudo do Meio, em que se analisam as cidades, faz-se passar a ideia de que os não-brancos “apareceram” no país “espontaneamente”. As crianças não-brancas continuam a ser tratadas como estrangeiras e não portuguesas. Por isso, “quem nasceu em Portugal lê aquilo e interroga-se: mas porque é que eu preciso de ser integrada?” E quando se chega à parte das profissões, nem uma das pessoas representadas é não-branca. “Com que direito é que se apagam as crianças não-brancas dos manuais, o direito a existir no seu próprio país?”
Conclui: “É suposto confiar no meu país, não tenho de andar a fazer um escrutínio dos livros que estão a ser dados na escola e a pensar que a minha filha está a ser alvo de racismo através dos manuais.”
O que mudou desde a queixa? “Nada, que eu saiba. E devia mudar.”
Não é problema de pessoas más
O discurso que ali é mostrado não é assim tão diferente do que Marta Araújo, 45 anos, e Silvia Rodríguez Maeso, 43 anos, encontraram em manuais escolares do 3.º ciclo num projecto-chave entre 2008 e 2012 sobre a representação do colonialismo e da escravatura — mais recentemente desenvolvido no livro Os Contornos do Eurocentrismo — Raça, História e Textos Políticos (Almedina).
Uma das conclusões é que nos manuais predomina a narrativa de exclusão e de inferiorização das pessoas negras, e uma forma de contar a História que consagra uma hierarquia racial, explica Marta Araújo, a coordenadora deste projecto que durou de 2008 a 2012.
Na sua análise, verificaram que é também comum o “silenciamento da luta política” de libertação. Esta é uma das questões graves, considera Silvia Maeso, justamente porque “o racismo é desumanização” e os manuais reproduzem-no quando representam outros colectivos humanos de forma passiva, sem reagir a uma situação de violência, sem pensar politicamente, nem responder a uma relação de poder.
Num dos workshops com jovens que organizaram no âmbito do projecto, foram problematizadas as questões da memória da escravatura. Apresentaram cinco campanhas para a abolição da escravatura. Nenhum dos participantes escolheu a imagem de escravos que se libertavam a si próprios.
Quiseram saber porquê. “Há um que diz: ‘Nunca me passou pela cabeça que fossem capazes de se libertar a si próprios.’ Ou seja, é a ideia do escravo como vítima que é incapaz de se organizar politicamente, que é incapaz de fazer uma luta e de se libertar da opressão. Isto implica uma discussão muito profunda e vem desde as noções mais básicas que aprendemos na escola primária.”
São concepções reproduzidas nas universidades — mesmo que alguns académicos o tenham questionado, nota Silvia Maeso. “O problema é que o conhecimento que transmitimos é racializado, mas não o vemos como tal.”
O racismo não é simplesmente “um problema das pessoas más”, acrescenta, por outro lado, Marta Araújo, para explicar o que é o racismo institucional. “Até mesmo quem está preocupado em denunciar vai perpetuando uma hierarquia racial.” Cita: “David T. Goldberg distingue o estado racista — que seria o apartheid — do estado racial, que tem uma legislação que não é explicitamente racista mas que também não tem medidas que promovam o fim do racismo institucional, que atribui direitos diferentes com base em raça”, afirma. “Isto vem desde a escola, e as instituições prolongam-no porque a sua concepção foi feita num mundo a pensar no privilégio branco.”
O Ministério da Educação diz que será apresentada em breve uma estratégia de educação para a cidadania, que inclui temas como a interculturalidade e o racismo. É uma das novidades do projecto-piloto de Autonomia e Flexibilidade Curricular e tem como objectivo potenciar uma abordagem integrada entre estes temas e os conteúdos de disciplinas como História e Geografia: “Este tipo de trabalho permitirá a exploração de outros materiais e recursos, além dos manuais, que já hoje são avaliados também sob critérios que visam garantir o respeito pela diversidade.”
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