O (provável) Presidente tampão
Vem de dentro, do partido que há décadas está no poder, com a chancela de um dos seus mais fiéis redutos, as Forças Armadas. Por enquanto ficará à sombra de Eduardo dos Santos, o Presidente emérito.
A eleição do general João Lourenço como sucessor da híper-liderança de José Eduardo dos Santos não será uma surpresa. A incógnita é saber como o novo inquilino do palácio presidencial de Luanda exercerá as suas funções e em que âmbito. Será um continuador? Haverá ruptura? Como coabitará com Eduardo dos Santos, que fica à frente do MPLA? Reformará a economia? Manterá os equilíbrios internos? O seu perfil aponta para um Presidente tampão, evitando saltos num país em crescentes dificuldades.
“Angola é um país emergente que não tem uma elite muito grande, a escolha do novo Presidente da República vai ser feita no quadro do partido que vai ganhar as eleições”, sintetiza António Martins da Cruz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Durão Barroso e ex-assessor diplomático de Cavaco Silva. “Com a eleição esperada do general João Lourenço, Angola vai entrar num novo ciclo político, ele foi ministro [da Defesa] de José Eduardo dos Santos e secretário-geral do MPLA (1998 a 2003)”, refere Martins da Cruz, convidado pelas autoridades angolanas a ser observador internacional nas eleições de hoje.
A previsibilidade implícita nas palavras do antigo ministro português não é compartida pela oposição angolana. “Lamento que o Presidente da República não tenha preparado a transição em ambiente de estabilidade”, critica Adalberto Costa Júnior, líder parlamentar da UNITA. “O país está formatado à imagem do Presidente Eduardo dos Santos, agora há uma orfandade do sistema institucional o que não é bom”, refere. “É necessária uma transição estável, é necessário fazer pontes com os sectores da Defesa e da Segurança e com o vice-presidente Manuel Vicente”, sustenta Costa Júnior.
A referência do dirigente da UNITA a Manuel Vicente, até Dezembro do ano passado apontado como sucessor natural de José Eduardo dos Santos, introduz mais uma incógnita. Até porque continuam as investigações de que é alvo pela Justiça portuguesa, vivamente criticadas por Luanda, e que terão corroído as hipóteses de sucessão. Qual o papel reservado ao actual vice-presidente por João Lourenço? “Manuel Vicente foi atacado e acusado pela filha de Eduardo dos Santos [pela má gestão na Sonangol], há uma negação absoluta do papel do vice-presidente e há espaço de contestação interna”, resume Adalberto Costa Júnior.
Oriundo das Forças Armadas, onde ingressou após a queda da ditadura portuguesa, em Agosto de 1974, o candidato do MPLA tem um vasto percurso militar como comissário provincial ou chefe da direcção política nacional das FAPLA [Forças Armadas Populares de Libertação de Angola], que concluiu, em 2014, com a nomeação para ministro da Defesa.
“Lourenço foi da ala prudente aquando da queda do muro de Berlim, agora tudo vai depender da ousadia, vai ter dificuldades com a manutenção de José Eduardo dos Santos no poder, à frente do MPLA”, antevê o antigo primeiro-ministro Marcolino Moco. Formado militarmente na União Soviética, na Academia Superior Lenine onde tirou o master em Ciências Históricas, João Lourenço esteve em Portugal por diversas vezes nas festas do Avante! e congressos do PCP, tendo integrado a delegação do MPLA aquando da adesão à Internacional Socialista.
Na campanha eleitoral João Lourenço tem referido que a sua liderança var ser diferente, num discurso prudente que, se insinua abertura, não a concretiza.
“É mais uma ilusão, foi secretário-geral do MPLA até 2003, foi facilitador do acesso à sua esposa, Ana Dias Lourenço, ministra do Planeamento”, acusa o escritor e jornalista Rafael Marques. Ana Lourenço estava ligada aos nitistas, o movimento liderado por Nito Alves nos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, mas foi absorvida por Eduardo dos Santos. Economista, a mulher do futuro Presidente foi directora-executiva do Conselho de Administração do Banco Mundial e foi duas vezes presidente do conselho de ministros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
“João Lourenço é um dos maiores latifundiários do país, enquanto ministro da Defesa vendeu produtos imaginários e reais das suas fazendas ao Ministério da Defesa, é sócio do banco SOL, do Banco Angolano de Investimentos”, prossegue. “Tem uma caixa multibanco na sua casa, assim escusa de ir ao banco, e com ele não há day after, é mais do mesmo, numa versão pior porque ele é um homem bronco, enquanto Eduardo dos Santos tinha a habilidade de manter equilíbrios”, sustenta Rafael Marques num dos poucos ataques demolidores dos sectores da oposição ao futuro Presidente.
Opinião diferente tem a antropóloga Margarida Paredes, antiga militante do MPLA. “[Lourenço] tem fama de ser honesto, e uma mulher intelectual, não parece uma má solução, é uma boa solução para um período de transição, ele é um general que vem das Forças Armadas, quando nestas há descontentamento”, refere.
O equilíbrio da relação com os sectores militares é destacado por Jaime Gama, antigo chefe da diplomacia portuguesa. “A escolha deste Presidente da República vem na linha do actual Presidente de manter alguém com capacidade de arbitragem entre todos os sectores da vida angolana, incluindo a relação com a área militar, procurando uma figura mais jovem e, só neste campo, se joga uma diferenciação”, analisa o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Lisboa.
O facto de ser mais jovem, Lourenço tem 63 anos, não aplana o terreno que vai pisar nem facilita a sua tarefa. À frente do MPLA, Eduardo dos Santos poderá funcionar, numa estrutura de grupos de influência, como um Presidente emérito, pelo que ter espaço para marcar a diferença vai ser necessário para o novo Presidente. Esta necessidade não é, apenas, política. Tem a dimensão urgente das dificuldades económicas.
“João Lourenço pode entrar de forma equilibrada mas, a médio prazo, esse entendimento não pode durar, a Sonangol foi um polo alternativo de poder e tem agora à frente Isabel dos Santos, a coexistência vai ser difícil, no futuro o cenário político vai ser mais turbulento”, admite Ricardo Soares de Oliveira, professor da Universidade de Oxford.
“É positiva a influência da mulher, Ana Lourenço, que foi ministra do Plano. Angola é um barril de pólvora mas não acredito numa ruptura a partir da sociedade civil”, salvaguarda Manuel Ennes Ferreira, professor do ISEG e especialista em África. “As mudanças hão-de vir de dentro, do MPLA, pode ser uma via reformista ou violenta ao estilo de ajuste de contas palaciano, mas a coexistência de um Presidente da República com um Presidente emérito, que controla o MPLA, mesmo que só seja até 2018, é muito difícil”, sustenta.
“João Lourenço tem um bom prestígio como figura pública, mas não tem poder”, anota Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos. “Com a crise da monocultura do petróleo, os angolanos descobriram que perderam a sua principal mercadoria política e económica, entraram num período de austeridade e perderam protagonismo político”, retracta.
“Para Eduardo dos Santos, que queria sair sem pôr em causa a família e os amigos, torna-se difícil manter uma corte alargada, pelo que a sua saída e a escolha de Lourenço eram inevitáveis”, considera.
“No MPLA há gente capaz de fazer pontes, mas vai ser preciso uma convulsão para que as pessoas tomem um atitude, se definirem a favor da sociedade e não dos interesses partidários”, antevê Rafael Marques. “Quando a sociedade se começar a manifestar de forma séria, grande parte dos generais fugirão das casernas porque têm medo dos seus próprios soldados, houve mesmo um general que tirou parte do espaço da sua unidade para fazer um resort com piscina”, relata.
“Em Angola há espaço para o desastre porque a oposição não foi capaz de se preparar para uma transição que é inevitável”, lamenta o escritor José Eduardo Agualusa. “Esta situação é muito perigosa, temos em Angola pessoas que não se deixam corromper, não sei quantos em Portugal resistiriam a um milhão de dólares, há uma geração nova, de contestação”, reflecte.
“A sociedade angolana é amorfa, não tem consciência unitária de nacionalidade, sofreu a ditadura marxista até à queda do muro de Berlim, sofreu a guerra até 2002 e agora sofreu com um Governo autoritário que reprime os jovens que começam a formar uma consciência nacional”, reflecte Marcolino Moco. “Angola precisa de políticos, de homens da sociedade civil, que a queiram servir, que o MPLA devolva o poder à sociedade angolana como aconteceu em Cabo Verde, o MPLA não entregou o poder à sociedade, foi engolido por José Eduardo dos Santos e a sua entourage”, remata o antigo primeiro-ministro.
O provável novo Presidente vem de dentro, do MPLA, com a chancela de um dos mais fiéis redutos do regime, as Forças Armadas. Pode ser o tampão para evitar descalabros, mas desconhece-se qual o futuro que desenha, para já, à sombra de Eduardo dos Santos, Presidente emérito.