“O problema de Angola não é a corrupção mas a má governança”
Não há indicadores económicos e sociais fiáveis, o país está no fundo da tabela da corrupção e dos índices de desenvolvimento humano, descreve Karina Carvalho, da Transparência Internacional. Mas pede aos angolanos que ajam, em vez de apenas se queixarem.
“O principal problema de Angola não é a corrupção, mas a má governança — e essa vem desde antes de 1975”, considera Karina Carvalho, directora executiva da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC), que faz parte da rede da Transparência Internacional. E para argumentar vai explanando um rol de indicadores sobre as condições económicas, sociais e demográficas angolanas, boa parte deles com dados de há cinco, dez anos — porque essa é uma das facetas da questão: as entidades públicas são avessas a divulgar informações estatísticas.
Numa conferência dedicada a “Pensar Angola em tempo de eleições”, anteontem, em Lisboa, Karina Carvalho, que viveu em Angola até aos anos 1980 e depois entre 2014 e 2016 (onde trabalhou na banca e em consultoria), não se cansou de pedir aos compatriotas: “Ajam.” “Temos de perder o pudor de falar mal do nosso país”, disse, apelando também a que não se fiquem por “dizer mal” (muitas vezes às escondidas, para que a família, no país, não sofra retaliações), mas que pressionem, por exemplo, as organizações que enviam dinheiro e outra ajuda humanitária para Angola para que estas tenham efectiva fiscalização sobre o seu uso.
Porque muita dessa ajuda não chega a quem dela realmente precisa — perde-se num caminho onde a corrupção impera, mas o que realmente trava o país é a “má governança”. “A corrupção é ao mesmo tempo uma causa e um sintoma da má governança.” E onde é que esta se reflecte no terreno?
“As políticas e medidas do Governo não privilegiam, primariamente, o interesse público”, aponta Karina Carvalho. Não há descentralização nem uma aposta no federalismo para gerir um país 14,5 vezes maior que Portugal, onde as províncias são administradas por governadores nomeados e não eleitos; não há investimento em escolas (a duração expectável da vida escolar é de cinco anos), hospitais ou centros de saúde (“não há vacinas e morrem 60 a 80 crianças por dia” e a esperança média de vida era de 52,7 anos em 2015”); as eleições, quando existem, não são escrutinadas, e não é possível derrubar o Governo; a sociedade civil e os empresários não são ouvidos sobre nada; o Estado de direito não funciona; os serviços públicos funcionam sobretudo com a ajuda de um envelope de kwanzas — a descrição e os exemplos são da responsável da TIAC.
Transformada a realidade em indicadores de governança, Angola é atirada para o fundo dos rankings de África, na casa dos 40 entre 54 países. E, no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas, Angola ocupa a 150.ª posição entre 188 países.
Apesar de assumir compromissos de combate à corrupção, com a assinatura da Convenção contra a Corrupção da ONU, ou a criação da Unidade de Informação Financeira, e de uma lei do combate ao branqueamento de capitais e ainda do Plano Nacional de Desenvolvimento (2013/17), o país fica aquém na implementação. “Reproduz os compromissos em documentos estratégicos e progressistas, mas depois não os concretiza e não há instituições internacionais que monitorizem o Governo.” No índice de percepção da corrupção de 2016 elaborado pela Transparência Internacional, Angola está no lugar 164 entre 176 países.
Por exemplo, a Unidade de Informação Financeira depende do poder executivo e do Banco de Angola, em vez de ser independente. Passar do papel à prática é, por isso, uma ilusão. Em 2014, 95% da economia dependia do petróleo e, para contrariar essa subordinação, o Plano de Desenvolvimento estipula uma estratégia de diversificação, porém, na agricultura “nada se fez na distribuição da terra. Ela é rica e abundante, mas as populações rurais não têm acesso à terra”, lamenta. “Isto é a subversão da raiz marxista que está na base da ideologia do Governo. O regime angolano tem uma ideologia liberal capitalista e, pior, sem qualquer respeito pelos direitos humanos”, aponta, para logo a seguir se corrigir: “Angola esqueceu a matriz marxista e esqueceu a matriz africanista.”
“Há os muito, muito ricos, que vêem o Stars Wars em Imax em casa, e depois os muito, muito pobres que nem têm bilhete de identidade”, conta Karina, que tenta desconstruir as várias “falácias” sobre Angola. Dizem que os angolanos são “um povo feliz” e que “não querem trabalhar”. A activista contrapõe: no ranking de felicidade de 2014/16, que entra em linha de conta com o PIB per capita, os apoios sociais, a esperança de vida, liberdade, generosidade e percepção da corrupção, Angola estava na 140.ª posição entre 155 — no fim da lista, portanto. E, olhando para os números do PIB por sector e para o investimento público, vê-se que o sector da agricultura, floresta e pesca vale apenas 5 a 7% e o petróleo 59%. “Onde querem que os angolanos trabalhem?”, questiona.
Outra “falácia”: Angola é rica. “Como é que um país rico pode ter 30% da população a viver com dois dólares/dia, como em 2008? Os dados mais recentes sobre pobreza são desse ano e nessa altura 54,5% da população vivia com 3,1 dólares/dia.” Apesar de tudo, o território tem “minérios, petróleo, diamantes”, mas só explorados por alguns “e para seu usufruto”. “O principal problema dos dirigentes de Angola é a pobreza de espírito”, acusa a activista Karina.