Uma história simples com um mestre zen e um cágado em fuga
É o primeiro filme unânime de Locarno: Lucky, espantosa carta de amor a Harry Dean Stanton e à sua vida bem vivida, Paterson geriátrico com um cágado fugitivo.
“Harry Dean Stanton saiu da tropa um ano antes de o festival de Locarno começar”, diz John Carroll Lynch a dada altura da conferência de imprensa de Lucky, o seu primeiro filme como realizador. E faz uma pausa para que fique bem claro como o actor, 91 anos, 236 créditos referenciados em filmes ou séries de televisão sob realizadores como Ridley Scott (Alien), John Carpenter (Fuga de Nova Iorque, Christine), Francis Ford Coppola (Do Fundo do Coração), Wim Wenders (Paris, Texas), Martin Scorsese (A Última Tentação de Cristo) ou David Lynch (Um Coração Selvagem, Uma História Simples), é um ícone cinéfilo.
Carroll Lynch, ele próprio actor de composição com 25 anos de carreira, diz, aliás, que só ouvir o seu “nome pronunciado ao lado do de Harry Dean Stanton” o faz “sentir humilde”. E também que quase toda a gente que entra no filme — um quem é quem dos secundários contemporâneos, com Ron Livingston, Tom Skerritt, Ed Begley Jr., Beth Grant, Barry Shabaka Henley e David Lynch, sim, esse mesmo — e muita da equipa disseram imediatamente que sim mesmo aos papéis mais ínfimos, só pela possibilidade de trabalhar, nem que fosse só um dia, com Stanton. “Ele é um mestre zen”, diz o argumentista Logan Sparks. “Ele costuma dizer que ‘adoro não fazer nada e depois descansar um bocadinho’.” Sparks lá sabe — há mais de 20 anos que é amigo do actor, aliás padrinho do seu filho, e inspirou-se na própria vida de Stanton para escrever Lucky.
Mas já lá vamos. Antes disso, o cágado.
O cágado chama-se President Roosevelt, vemo-lo a passear placidamente pelo deserto do Arizona, e, sabê-lo-emos mais à frente, fugiu de casa. “Como é que se deixa um cágado fugir?”, pergunta toda a gente ao dono do cágado. “Ele andou a planear isto durante muito tempo”, responde Howard. “Viu a sua oportunidade e aproveitou-a.” Howard é interpretado por David Lynch, e por aí fazemos a ligação com o mais atípico dos filmes do autor de Twin Peaks, Uma História Simples, em que um homem fazia uma viagem de tractor pela América profunda para se reconciliar com o irmão. A viagem de Lucky resume-se a uma pequena terreola onde todos se conhecem e todos sabem onde todos os outros moram, e onde a personagem de Stanton, Lucky de sua alcunha (porque nome nunca o saberemos), segue a sua rotina diária e imutável, que envolve o café da manhã, um copo de leite frio, palavras cruzadas e café no diner da cidade, o Bloody Mary da praxe à noite no bar da Elaine.
Até ao dia em que, depois de o cágado fugir, Lucky pura e simplesmente cai no chão. Sem vertigens, sem aviso, sem dores, pumba. O médico diz-lhe que nunca viu nada assim — o homem tem uma saúde de ferro, já enterrou meia cidade, e “só não te digo para parares de fumar porque no teu caso era capaz de fazer mais mal do que bem”. A única explicação para a queda? “Estás velho e mais velho vais ficar.”
Lucky seria, então, a versão geriátrica de Paterson, sobre o quotidiano rotineiro de um homem que se vê confrontado com a morte — “não pela primeira vez”, como diz Carroll Lynch, “mas muito provavelmente pela última”. Um filme sobre descobrir a poesia e a beleza pelo meio da vida moderna, guiados pela tal presença de mestre zen de Stanton, cujos conselhos, conversas, bons mots e postura geral perante a vida inspiraram Logan Sparks e Drago Sumonja a escrever esta história. “Estávamos a conduzir pelo Arizona, a conversar sobre usar todas as coisas que ele nos foi dando ao longo dos anos numa história”, explica Sumonja, avançando que muitos dos diálogos são coisas que o próprio actor disse na vida real. “Ele muda-nos, o que ele nos diz altera de facto as nossas vidas. Mas não queríamos fazer um documentário, queríamos arranjar maneira de o fazer dentro de uma narrativa linear.”
Se Lucky é uma carta de amor a um actor, não é no entanto um filme que se apague perante o actor, ou o deixe à solta. Não é uma surpresa que seja um actor a realizá-lo, porque precisa daquela atenção e daqueles “momentos calmos” que muitas vezes só os actores-realizadores conseguem identificar. O que já é surpreendente é o tom descontraído, acolhedor, em que John Carroll Lynch envolve tudo; desenhando o que une todas estas pessoas, o que faz uma comunidade, e como alguém “à parte” como Lucky faz parte dessa comunidade e acaba por ser uma espécie de “cola”. Lucky poderia não existir sem Harry Dean Stanton, mas existe para lá dele como filme de corpo inteiro, com um forte travo dos melhores “pequenos filmes” do cinema americano dos anos 1970 — Hal Ashby e Don Siegel vieram-nos à cabeça quase imediatamente, e provavelmente não é por acaso — e também com aquele “excepcionalismo” de quem sabe encontrar a poesia e a magia pelo meio da normalidade mais rotineira.
Só que com um cágado pelo meio. E o cágado, acreditem, é tão importante para Lucky como Harry Dean Stanton.