O Verão em que a austeridade veio para ficar

Troika em Portugal, pressão em Bruxelas, sustos nos mercados e um novo governo a falar da existência de um “desvio colossal” nas contas públicas. No Verão de 2011, os portugueses perceberam definitivamente que a austeridade não seria temporária.

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Tomada de posse do Governo de Passos Coelho, a 21 de Junho de 2011 Daniel Rocha
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O "momento Vítor Gastar", no qual o antigo ministro das Finanças explicou a célebre expressão "desvio colossal Nuno Ferreira Santos
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Primeira conferência de imprensa da troika em Portugal Rui Gaudêncio

Estávamos a 14 de Julho e aquilo de que se falava era do “desvio colossal” nas contas públicas que Passos Coelho teria anunciado, dois dias antes, ao membros do conselho nacional do PSD numa reunião à porta fechada. Vítor Gaspar, ministro das Finanças há menos de um mês, decidiu explicar, de forma pausada, para todos entenderem: “A expressão ‘desvio colossal’ deve-se a uma omissão de palavras que foram usadas entre ‘desvio’ e “colossal’. O que terá sido dito é que ‘foram detectados desvios e que a consolidação orçamental nos vai exigir um trabalho colossal’”. Os portugueses já tinham começado a habituar-se ao singular sentido de humor do novo ministro das Finanças, mas nesse dia, 14 de Julho de 2011, ficaram também a perceber, com toda a certeza, que a nova vaga de austeridade a que iriam ser sujeitos seria ainda mais pesada do que aquilo de que já estavam à espera.

O Verão de 2011, com a troika acabada de chegar ao país, um novo governo em funções e uma zona euro em estado de crise permanente, foi um período em que, com as más notícias a sucederem-se dia após dia, deixaram de existir dúvidas de que a austeridade tinha vindo para ficar, uma certeza que deteriorou ainda mais a já débil confiança dos portugueses e empurrou a economia para uma das recessões mais profundas e longas da sua história.

Não se pode dizer, contudo, que o anúncio de medidas de contenção orçamental fosse propriamente uma novidade. Desde 2010, depois de o défice ter disparado em 2009 e a crise das dívidas soberanas do euro ter arrancado na Grécia, que o Governo liderado por José Sócrates vinha apresentando sucessivos pacotes de medidas de austeridade. PEC I, II e III incluíam aumentos de impostos e cortes nos salários da função pública. Isso não evitou, contudo, que Portugal fosse perdendo progressivamente o acesso aos mercados da dívida, o que acabou por resultar, a 6 de Abril, no anúncio pelo primeiro-ministro do pedido de resgate.

Seis dias depois, os técnicos da troika chegaram a Portugal e a 5 de Maio foi assinado aquilo a que se chamou “programa de ajustamento”. Nessa altura, no entanto, com eleições marcadas para o mês seguinte, ainda sobrevivia a ideia de que aquilo que iria agora contecer não seria muito diferente do já ocorrido no ano anterior. José Sócrates falava de “um bom acordo” e destacava tudo aquilo que não tinha sido acordado, como novos cortes nos salários, no subsídio de Natal ou nas pensões. Passos Coelho também colocava de lado a aplicação desse tipo de cortes e defendia que ainda haveria “margem para promover um choque de competitividade” na economia portuguesa, com reduções na carga fiscal.

Chegou o Verão e a austeridade

Concluído o período de campanha eleitoral e chegado o Verão, o ambiente mudou drasticamente. O Governo tomou posse a 21 de Junho, primeiro dia da nova estação, e logo dois dias depois, no final da sua primeira cimeira europeia, o novo primeiro-ministro surpreende o país com o anúncio de que o Governo tinha pronto um conjunto de medidas de austeridade para aplicar imediatamente, algumas já previstas nos acordos com a troika, mas outras que iriam além do acordado.

A pressão dos parceiros europeus, que tentavam evitar um efeito de contágio generalizado na zona euro da crise grega, terá forçado o Governo a tentar mostrar, o mais depressa possível, que “Portugal não era igual à Grécia”. E, por isso, as novas medidas anunciadas incluíam um programa de privatizações bastante mais ambicioso do que o acordado com a troika, uma redução do défice mais rápida do que o previsto e o lançamento de um plano de rescisões amigáveis na função pública.

Seria isto o suficiente para satisfazer os parceiros europeus e os mercados? Bastou passar mais uma semana para perceber que não. A 29 de Junho, o Instituto Nacional de Estatística divulga os dados das contas públicas para o primeiro trimestre e anuncia que o défice público tinha sido de 7,7% do PIB, um valor que colocava desde já em causa a meta de 5,9% que tinha sido acordada com a troika.

Isso terá sido o suficiente para que, no dia seguinte, Passos Coelho tivesse feito um dos anúncios mais difíceis de todo o seu mandato, ao revelar que no decorrer desse ano seria aplicada uma taxa extraordinária de IRS de 3,5%, o que na prática implicava um corte no subsídio de Natal que poderia ir acima dos 50% para alguns contribuintes. Deste modo, o primeiro-ministro quebrava, apenas nove dias depois de tomar posse, uma das suas mais repetidas promessa de campanha: a de não usar o subsídio de Natal para reduzir o défice. “O estado das contas públicas forçou-me a pedir mais sacrifícios aos portugueses”, explicou então.

Nos dias seguintes, não se assistiria a uma redução da pressão a que estava sujeito o país. Internamente, os sinais de problemas no sector bancário começavam a avolumar-se, com um aumento do crédito malparado e o surgimento de obstáculos à continuação do financiamento às empresas públicas e às PPP.

Do exterior os apelos a que fossem tomadas mais medidas surgiam de diversas formas. A agência de notação financeira internacional Moody’s tornou-se, a 5 de Julho, na primeira a colocar o rating português num patamar “lixo”, não servindo de nada as acusações de “arrogância e superficialidade” feitas então pelo Governo.

Bruxelas em alerta constante

Em Bruxelas, vivia-se em estado de alerta constante, à medida que as taxas de juro da dívida pública italiana e espanhola disparavam, indiferentes à acção do BCE e aos anúncios políticos dos líderes europeus. A 11 de Julho realizou-se uma reunião de emergência do Eurogrupo para enfrentar a situação e de lá saiu mais um apelo para que os governos fizessem alguma coisa para evitar o contágio.

O executivo português respondeu. A 12 de Julho, Passos Coelho fala – de acordo com os relatos recolhidos por diversos órgãos de comunicação social da reunião do conselho nacional do PSD – da existência de um “desvio colossal” nas contas públicas deixadas pelo Governo PS. E a 14 de Julho Vítor Gaspar explica não só esse desvio, como também a forma como serão cortados os subsídios de Natal aos portugueses.

Por essa altura, entre os responsáveis da troika, era já clara a ideia de que as medidas anunciadas não iriam chegar para atingir as metas orçamentais desejadas. Com tantas notícias negativas, a confiança dos consumidores e das empresas portuguesas registou em Agosto uma das quedas mensais mais acentuadas de que há registo, e inevitavelmente o consumo privado e o investimento caíram a pique. A economia, que já tinha exibido variações negativas no primeiro e segundo trimestres, recuou ainda mais no período de Agosto a Setembro.

PÚBLICO -
Aumentar

No total de 2011, o PIB acabaria por registar uma variação negativa de 1,8%, um valor muito mais negativo do que o estimado pela troika, o que teve um impacto negativo nas receitas fiscais. Por essa altura, contudo, o FMI ainda não tinha chegado à conclusão (a que chegou em 2014) de que o efeito da austeridade no crescimento era mais forte do que o calculado e a resposta à derrapagem das contas foi pedir mais medidas de consolidação.

Ainda durante o Verão, em Agosto, o Governo respondeu e apresentou medidas para evitar uma derrapagem do défice. A principal foi a subida da taxa do IVA aplicada nas contas da electricidade e do gás de 6% para 23%.

Por essa altura, já não havia quem duvidasse de que, por muitos programas de consolidação que fossem apresentados, mais austeridade estaria ainda para vir. Nos dois anos seguintes, mais impostos, mais cortes nos salários, mais reduções dos subsídios e diminuições nas pensões seriam decididos. E foi nesse Verão de 2011 que esse facto se tornou completamente claro.

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