Como funciona a “geringonça”? Jorge Costa explica, no acampamento do BE

Uma maioria absoluta do PS seria uma “péssima notícia” para o Bloco, disse o deputado no acampamento de jovens do BE. As histórias da "gerigonça", o trabalho do rapper Chullage, o piar das corujas à noite. No Liberdade, eles fazem o Verão e a revolução.

Foto
Adriano Miranda

Com uma solução de Governo inédita em Portugal, é natural que os jovens do Bloco de Esquerda sintam curiosidade sobre a forma como funciona a chamada “geringonça”. Por isso mesmo o deputado Jorge Costa foi até ao acampamento Liberdade contar-lhes como é o dia-a-dia das negociações entre o BE e um Governo minoritário do PS. Desengane-se quem está à espera de grandes histórias ou revelações: a primeira ideia que o deputado bloquista desconstrói é a de que tudo se passa no “segredos dos gabinetes e nas altas esferas”. “Não é assim”. Então como é?

O workshop chama-se "Keeping up with geringonça". O título foi escolhido pelos jovens, querem ouvir o bloquista que tem acompanhado as negociações com este executivo desde o momento em que ainda não havia um executivo sequer. Mas a ideia de que há um “frenesim” diário e uns “bastidores” impenetráveis não corresponde à realidade, diz Jorge Costa que, ainda assim, embarca no desafio de deixar os jovens espreitarem pelo “buraco da fechadura”.

E do lado de lá da porta está política pura e dura, mesmo que Jorge Costa insista que todas as negociações foram e são “feitas a céu aberto e na praça pública”. Aliás, recordou, o primeiro passo, tão tímido quanto ousado, para que tudo isto acontecesse foi dado pela coordenadora do BE, Catarina Martins, na televisão, quando disse, ao então adversário socialista António Costa, que estaria disposta a falar depois das eleições legislativas, desde que fossem respeitadas algumas linhas vermelhas. “Naquela altura, António Costa não respondeu e calou-se”, lembrou Jorge Costa. Depois, como se sabe, aceitou.

“Não houve reality show, nada a passar-se dentro da casa com câmaras ocultas”, graceja o deputado. À volta, numa roda, estão 15 pessoas a ouvi-lo. A tarde vai a meio, há alguns jovens na praia fluvial, a aproveitar o bom tempo; outros estão noutras rodas também em workshops; ouvem-se as cigarras e o vento a bater nas folhas das muitas árvores do Parque de Campismo de São Gião.

É aqui que acontece o acampamento de jovens do BE, uma festa sem sobressaltos, com muito vagar e mergulhos, muitas conversas e ideologia, onde à noite há festas mas nas tendas ouve-se o piar das corujas. Neste ano, o Liberdade arrancou a 26 e só termina neste domingo, com a presença de Catarina Martins. O programa inclui temas como banca, capitalismo e saúde mental, um workshop sobre o livro O Capital, espaços queer e feminista, uma festa anti-racista, um concerto do rapper e activista Chullage.

À sombra e à frente de uma faixa na qual se lê “precariedade não é futuro”, Jorge Costa repete que nada do que foi o processo para se alcançar esta solução política (um Governo minoritário do PS com o apoio parlamentar do BE e do PCP) e nada do que são as negociações para os orçamentos são “uma conspiração de gabinete”. O BE até quer, aliás, que haja uma “evidência pública das negociações”.

Lembra que este é um Governo minoritário do PS, que não é um Governo do BE, e que os jovens bem podem tirar do horizonte de expectativas o cenário de ver ministros bloquistas num Governo socialista. Não é expectável, insiste Jorge Costa, que alguma vez o Bloco venha integrar um executivo socialista, quando há questões de fundo que dividem os dois partidos: a dívida e a Europa, por exemplo.

Há uma outra pergunta incómoda que os jovens querem ver respondida e o deputado sabe qual é: o BE rendeu-se ao mal menor? Jorge Costa explica-lhes que não. Descansa-os: o que esta solução permitiu foi impedir que se continuassem a fazer “maldades” aos trabalhadores e estabelecer linhas vermelhas para respeitar salários, pensões e a carga fiscal de quem trabalha. “Só daqui para cima é que se fala. Com isto eliminamos o mal menor da equação”, diz. O BE sabe que não consegue travar “o roubo” que “na sociedade capitalista está sempre a acontecer”, mas no actual xadrez político consegue que esse “roubo” não passe pelo Orçamento do Estado, continua.

“O capitalismo não dorme”

O tempo está quase a acabar, mas o deputado ainda tem algumas ideias para lançar ao grupo que o circunda: a de que “uma força anticapitalista como o BE” teve “uma oportunidade histórica”, com esta solução de Governo, para “determinar uma parte do programa de Governo”. Que tem agora uma “maior capacidade de influência” e que tal não se deve a uma maior “capacidade de persuasão” ou de “boas razões”. Tal deve-se à “relação de forças” existente e é nessa relação que se fazem as negociações.

Negociações que não são como num “bazar”, não é uma lógica comercial que as norteia. Numa negociação política, sintetiza, o que conta é a “necessidade” de acordo e dependência mútua. No final dos quatro anos de legislatura, o próximo sentido de voto dos eleitores vai pesar no balanço da “geringonça”. Se o que acontecer, nessa altura, for uma maioria absoluta do PS – e ainda que tal representasse uma “derrota” para a direita – será “muito mau”, será “uma péssima notícia” para o BE, seria “matar a relação de forças destes anos”, significaria que o BE deixaria de ter influência: “O PS é diferente quando está dependente das forças à sua esquerda”, alerta Jorge Costa.

O tempo passa a correr na conversa com o deputado, ainda que no Parque de campismo de São Gião, com tanta calma e silêncio durante o dia, pareça que ele, o tempo, anda mais devagar. Penduradas nas árvores, estão muitas das ideias em que estes jovens acreditam: “O FMI não te ajuda a ti”; “Portugal fora da NATO, NATO fora de Portugal”; “O capitalismo é tóxico”.

Frederico Carreiro tem 17 anos e está no acampamento, onde estão à volta de 140 pessoas, pela primeira vez. Ainda está a descobrir muita coisa, esteve a ouvir a deputada Mariana Mortágua sobre o que é o BE, mas já sabe muito bem o que quer fazer. Agora vai dedicar um ano ao voluntariado na Alemanha numa Organização Não Governamental (ONG) ligada à participação política dos jovens e à cidadania activa. Só depois vai estudar Ciência Política e Relações Internacionais. No futuro, seja no Parlamento ou numa ONG, sabe que a política ou activismo vão fazer parte da sua vida.

Sempre debaixo das árvores, agora com uma viola de fundo e Tom Jobim a embalar o início da noite, os jovens reúnem-se novamente, depois de jantar, numa roda para conversar sobre o tema “a cultura é uma arma”. O rapper Chullage fala-lhes do seu trabalho, das contradições e dilemas que enfrenta: o que adianta encher as letras das músicas de vocabulário revolucionário se depois elas estão nas grandes editoras ou a serem tocadas nas grandes superfícies e nos megafestivais, à mistura com marcas sonantes e publicidades poderosas? “O sistema capitalista não dorme”, avisa. Ainda assim, não há dúvidas sobre o que o rap lhe deu, deu-lhe uma “voz”, a ele que cresceu num bairro no Monte da Caparica, “onde a polícia entrava e fazia o que queria”.

O concerto que Chullage dá a seguir é bem à escala do que se defende no acampamento. É praticamente uma roda de pessoas que circundam os músicos. Uma escala de proximidade muito longe do espírito de massas de alguns grandes festivais. “E a finança enche a pança/Com o aval da liderança/Despedimentos em vez de aumentos/São os rumos da mudança”. Música para dançar e para pensar, como querem os jovens do BE.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários