Um ano depois do golpe, oposição tenta renascer na Turquia

Algo começou a mudar nas últimas semanas, acredita o líder da oposição. Para muitos, a vida tornou-se dura como nunca e é difícil ver a luz. Afinal, dizem, o seu país foi “sequestrado".

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Erdogan vai celebrar o fracasso do golpe com discursos e comícios Alkis Konstantinidis/Reuters

Há um ano, o jornalista e colunista Yavuz Baydar vivia e trabalhava em Istambul e não sabia que em breve ia escolher o exílio para não ser detido. Pela mesma altura, Nuriye Gülmen e Semih Özakça, saíam de casa todos os dias para ensinar – ela Literatura, ele de tudo um pouco aos alunos de uma escola primária em Ancara. A 8 de Março, entraram em greve de fome para tentarem recuperar os seus empregos: estão entre os perto de 100 mil funcionários públicos afastados numa purga cega.

A Turquia de hoje não é exactamente a mesma de 15 de Julho de 2015, data de um golpe de Estado falhado (de forma tão amadora que muitos sugeriram ter sido encenado) que Recep Tayyip Erdogan, o Presidente mais poderoso que os turcos já conheceram, atribuiu a um líder religioso ex-aliado que terá conseguido infiltrar o seu movimento em todas as instituições (esta semana, o comandante da polícia militar dizia que os conspiradores “se transformaram em robots” no momento em que receberam ordens para avançar) – daí o pretexto para a “limpeza” drástica que arrastou opositores, jornalistas, activistas, críticos do Presidente ou simples cidadãos que tiveram o azar de pôr os filhos na escola errada ou o dinheiro num banco suspeito.

Por trás do golpe, diz Erdogan e o seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002), esteve Fethullah Gülen e o movimento social e religioso que fundou, o Hizmet (serviço). O nome Gülen desapareceu do debate – que hoje é muito pouco livre, depois da detenção de 160 jornalistas e do encerramento de dezenas de publicações, rádios ou canais de televisão independentes – e foi substituído por FETO (Organização Terrorista Fethullanista) ou simplesmente “terroristas”.

Para Erdogan, as centenas de milhares de pessoas que marcharam há dias de Ancara a Istambul encabeçadas pelo líder da oposição são “terroristas”. Assim como Yavuz Baydar; muito provavelmente, até Nuriye Gülmen e Semih Özakça, por ousarem desafiá-lo com a greve de fome que mantêm e que desde Maio cumprem sob custódia para evitar que o seu protesto inspire manifestações de rua.

A Turquia estava adormecida, anestesiada, assustada. O golpe foi o primeiro susto. “Não há como exagerar o trauma da tentativa de golpe que abalou a Turquia. Antes que a noite acabasse, quase 300 pessoas tinham morrido, mais de mil tinham sido feridas e o Parlamento bombardeado”, escreve Howard Eissenstat, especialista em nacionalismos que tem estudado a Turquia, num comentário para a Reuters. No dia seguinte, Erdogan falava num “presente de Deus” que permitiria distinguir os “patriotas” dos “terroristas” e reforçar a soberania da nação. Cinco dias depois, era declarado o estado de emergência.

Entretanto, os turcos foram percebendo que qualquer um podia deitar-se patriota e acordar terrorista. O estado de emergência deu às autoridades poderes alargados para deter e manter atrás das grades sem acusação ou um advogado de confiança. Entretanto, milhares de professores e um quarto dos juízes foram despedidos ou suspensos, e impedidos de sair do país. Em Abril, uma reforma que transforma a Turquia numa república presidencial e concentra vastos poderes (legislativos, executivos e até judiciais) no chefe de Estado foi aprovada por 51% dos votos.

Antes e depois da marcha

A margem é curta. Metade da Turquia está com Erdogan, incluindo os que se dispõem a morrer por ele, como tantos turcos que saíram à rua há um ano e enfrentaram os tanques a seu pedido. A outra metade é o tal país anestesiado e assustado. Os líderes do CHP (Partido Republicano do Povo, secularista e herdeiro do fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk), o maior partido da oposição parlamentar, acreditam que acabam de acordar esse país e há quem acredite neles.

“A Turquia não é o mesmo país de há 25 dias”, diz Murat Yetklin, colunista do jornal Hurriyet entrevistado pelo Guardian. “Há sinais de que a Marcha da Justiça, pacífica mas gigantesca… começou a mudar a atitude do AKP. Também pode ter mudado a cultura política mais geral na Turquia”. A marcha foi liderada por Kemal Kiliçdaroglu, o líder do CHP, e terminou num enorme comício em Istambul, exactamente há uma semana – tão grande que fez lembrar as concentrações promovidas pelo AKP para “comemorar” o fracasso do golpe, nas semanas que se lhe seguiram. Tão grande que pode ensombrar as comemorações marcadas por Erdogan para o fim-de-semana.

“Há um reino de medo. Jornalistas e cidadãos, o povo, não pode falar. É disso que temos de nos ver livres”, disse Kiliçdaroglu à multidão. “A 15 de Julho todos os partidos estiveram contra o golpe, mas a 20 de Julho houve um golpe civil e o principal conspirador foi Erdogan”, afirmou, referindo-se à imposição do estado de emergência. Kiliçdaroglu acredita ter dado “esperança” aos que tinham medo. Erdogan terá sido apanhado desprevenido com a dimensão de um protesto planeado depois da detenção de um dirigente do CHP (o segundo maior partido da oposição, o HDP, pró-curdo, tem vários deputados e o seu líder na cadeia).

Kiliçdaroglu promete não mais esmorecer e anunciou uma lista de dez exigências para apresentar a Erdogan (levantar o estado de emergência, restaurar a independência do Parlamento e da Justiça…) e anuncia mais acções de rua e “a maior petição do mundo” em nome dos detidos.

Futuro "sinistro"

Yavuz Baydar não consegue acreditar que Erdogan recue. O veterano e premiado jornalista fugiu do país em Setembro do ano passado, quando a polícia fez buscas no seu apartamento e soube estar numa lista de “inimigos públicos”. Diz que Erdogan “sequestrou” a sua Turquia e fala na “crise sistémica mais profunda de sempre”. “O Estado de Direito entrou em colapso, a Justiça tornou-se numa extensão do palácio de Erdogan, o Parlamento perdeu os seus poderes de escrutínio [do Governo] e os media estão 90% sob controlo de Erdogan”, defende.

Baydar sabe, como todos sabem e poucos verbalizam, que a economia turca está em mau estado e que sem os cérebros em fuga será difícil inverter a tendência. Ele é um desses “cérebros” e não se vê a regressar a um país perdido “em batalhas identitárias”. O futuro, como ele o vê, “é sinistro e isso é uma previsão realista”.

Ao contrário do que acontece com Baydar, é impossível falar com Nuriye Gülmen e Semih Özakça. O seu advogado avisa que “há pouco tempo para os salvar”. Antes da detenção, sobreviviam com uma dieta de limão, água com sal ou açúcar. Depois, “a sua saúde piorou”. Deixaram de comer há 129 dias e garantem que só a devolução dos seus empregos (que não sabem por que razão perderam) os fará terminar o protesto. Querem o regresso à normalidade, esquecer o último ano.

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