Tom of Finland para maiores de 12 anos em abertura do Fest
Biografia do icónico artista LGBTQ dá esta segunda-feira, em antestreia, o pontapé de saída para o festival de Espinho, que recebe até 26 de Junho técnicos, realizadores e actores.
O nome Tom of Finland fez, ao longo do último meio século, uma viagem inesperada: do fetichismo homossexual confidencial partilhado por uma comunidade minoritária para o reconhecimento global como artista de corpo inteiro e bandeira da comunidade LGBTQ (lésbica, gay, bissexual, transsexual e queer). Mas é sobre a figura por trás do nome artístico, Touko Laaksonen (1920-1991), artista comercial e veterano de guerra finlandês, que se debruça Tom of Finland, o filme biográfico que inaugura, esta segunda-feira à noite, em Espinho, a 13ª edição do Fest – Festival Novos Realizadores Novo Cinema.
Para o certame nortenho, mais reconhecido pelo seu programa de seminários e workshops paralelo Training Ground, a abertura com Tom of Finland marca a oportunidade de reencontrar um anterior vencedor do festival. Trata-se da sétima realização do finlandês Dome Karukoski (n. 1976), que venceu a competição em 2008 com a sua segunda longa, The House of the Dark Butterflies, e cuja única obra a estrear entre nós foi Coração de Leão (2013).
É significativo que Tom of Finland seja uma biografia convencionalmente clássica, realizada no âmbito do programa oficial do centenário da independência finlandesa, e corresponda a todas as regras contemporâneas da co-produção europeia. É um filme que não teria sido possível fazer – nem fazer desta maneira – quando Tom morreu em 1991, aos 71 anos de idade. A Finlândia só descriminalizou a homossexualidade nos anos 1970, e grande parte da acção do filme concentra-se nas décadas imediatamente anteriores, usando como “motor” o conflito entre os desejos eróticos do artista e a sociedade conservadora e homofóbica em que residia. Nesse aspecto, que Tom of Finland seja hoje celebrado por um país natal onde a homossexualidade foi durante décadas considerada uma perturbação psiquiátrica tem o seu quê de irónico.
Mas é uma ironia que esteve sempre presente na dimensão libertária, celebratória dos desenhos eróticos de Tom of Finland. A iconografia hiper-masculinizada das imagens que começou a criar após a Segunda Guerra Mundial, caracterizados por corpos masculinos musculados vestidos com couro, uniformes, botas, representando toda uma série de ocupações tradicionalmente reservadas aos homens (polícias, soldados, vaqueiros, lenhadores, motards), tornou-se praticamente indissociável de uma das mais influentes correntes de fetichismo sexual. Introduzia ao mesmo tempo uma transfiguração das questões de género, com a virilidade e a força destas figuras “machistas” a serem simultaneamente subvertidas e reforçadas pelo seu desejo sexual pelo seu próprio género. Se a iconografia transbordou igualmente para a cultura pop (com um exemplo-limite nos ícones do disco que foram os Village People) e acabaria por ser reconhecida como arte por instituições como o MoMA nova-iorquino, isso deve-se também ao mais que evidente talento do seu autor.
Por trás do pseudónimo Tom of Finland, escondia-se um artista de formação clássica – no dia a dia, Touko Laaksonen, filho de professores que combatera contra os russos na Segunda Guerra Mundial e estudara piano, era artista gráfico e director artístico numa agência publicitária de Helsínquia. (Só em 1973, quando o nome Tom of Finland já era reconhecido nas comunidades LGBTQ mundiais, abandonou o seu “emprego diurno” na McCann Erickson.) Os seus desenhos secretos reflectiam a sua “segunda vida” no meio de uma sociedade homofóbica onde a única hipótese de relação estável para um homossexual era sexo casual nas sombras de um parque público à noite. Mesmo assim, Laaksonen viveu durante quase 30 anos em Helsínquia com o bailarino Veli Mäkinen, que morreu de cancro da garganta em 1981.
O filme de Dome Karukoski, surpreendentemente “asséptico” e inofensivo, concentra-se essencialmente nos anos formadores da “persona” de Tom of Finland, pseudónimo que surgiu quase por acaso. Laaksonen assinava anonimamente os seus desenhos como “Tom” e foi o editor da revista americana Physique Pictorial que lhe anexou “of Finland” ao publicar o seu trabalho em meados da década de 1950. Se o simples nome Tom of Finland é suficiente para atrair o público LGBTQ para quem ele foi mais influente, Karukoski não está claramente interessado em “pregar aos convertidos”; a partir de uma personagem “interdita a menores de 18 anos”, fez um filme “para maiores de 12 anos”.
O filme cumpre à risca a referência à origem dos desenhos de Tom nas suas experiências militares na Segunda Guerra Mundial e no fascínio pela estética do poder transposta para os uniformes. Mas contenta-se em contar a sua história de acordo com as regras do filme de época bem-comportado, sem nunca esgravatar para lá da superfície relativamente ao porquê do impacto da sua arte – como se estivesse a responder a um “caderno de encargos” institucional de fazer um filme sobre uma grande personagem finlandesa que influenciou o mundo.
Tom of Finland abre esta segunda-feira à noite o Fest, antes da estreia comercial portuguesa, que terá lugar a 6 de Julho próximo, e dá o tiro de partida para um programa que traz 11 longas-metragens (primeiras e segundas obras de jovens realizadores) a concurso para o Lince de Ouro e 52 curtas (assinadas por cineastas com menos de 30 anos) na competição para o Lince de Prata, bem como série de filmes realizados em contexto de escola.
Como sempre, o prato forte do programa do Fest é o evento paralelo Training Ground, um programa intensivo de seminários, master-classes e workshops destinados a jovens cineastas, que conta este ano com a presença, entre outros, da actriz Melissa Leo; de Ed Lachman, director de fotografia regular de Todd Haynes e Ulrich Seidl; do produtor britânico Gareth Wiley (Vicky Cristina Barcelona); e de Gary Yershon, compositor habitual dos filmes de Mike Leigh.
O Fest decorre até 26 de Junho e as informações podem ser encontradas no site https://site.fest.pt