Uma polémica feia
Pereira Gomes e os outros 29 membros da missão portuguesa foram os únicos portugueses não militares que em décadas puseram as suas vidas em risco ao serviço do Estado português.
Veio na última semana escancarado nos jornais, e designadamente no PÚBLICO: o embaixador José Júlio Pereira Gomes foi nomeado secretário-geral do Sistema de Informações da República (SG-SIRP). Ana Gomes, eurodeputada e ex-embaixadora, acusa Pereira Gomes de falta de perfil psicológico para o cargo, com base em duas coisas: uma, que teria decidido abandonar Timor a 9 de Setembro de 1999, contra o desejo do Governo português; a segunda, que se estaria a preparar para esse abandono deixando à mercê das milícias os timorenses que tinham trabalhado para a Missão de Observação Portuguesa ao Processo de Consulta da ONU em Timor-Leste (MOPTL).
Pereira Gomes defendeu-se declarando que tinha saído de Timor com ordem expressa do Governo português e que só o tinha feito depois de assegurar que os timorenses que tínhamos à nossa guarda poderiam também ser evacuados. Luciano Alvarez veio depois nas páginas do PÚBLICO chamar duplamente mentiroso a José Júlio Pereira Gomes, dizendo que a decisão de sair foi imposta por ele contra a vontade do Governo português e que a sorte dos timorenses que estavam com a MOPTL lhe era indiferente. A posição de Ana Gomes parece-me de uma tremenda injustiça; a de Luciano Alvarez uma acusação injustificada e gratuita.
Em 5 de Maio de 1999, Portugal e a Indonésia concluíram na ONU, em Nova Iorque, um acordo tendo em vista a realização de um referendo sobre a independência de Timor-Leste. Na sequência deste acordo, as Nações Unidas criaram num tempo recorde uma missão (UNAMET) para preparar e realizar o referendo em Timor-Leste. O Estado português, por seu turno, criou uma missão de observadores oficiais, que teria até 30 observadores. José Júlio Pereira Gomes foi designado chefe desta missão.
Com enorme entusiasmo, o núcleo inicial da missão estava em Timor em muito pouco tempo e rapidamente criou as estruturas mínimas para a missão poder funcionar. Juntei-me a essa missão no início de Agosto de 1999, verificando que os membros iniciais lá estavam há dois meses ou mais.
A missão não tinha deliberadamente quaisquer meios de defesa próprios, incumbindo à Indonésia garantir a sua segurança. Os observadores tiveram de fazer face, ao longo de três meses, a todo o tipo de problemas e limitações, incluindo-se nestas ter malária e ter falta de água para tomar banho e de telefones de satélite cujo pagamento dependia de Lisboa, que por vezes se esquecia...
O referendo teve lugar a 30 de Agosto de 1999, o anúncio dos resultados às 11h da manhã do dia 4 de Setembro. O caos rebentou em Díli logo a seguir à hora do almoço. Os observadores foram todos para a sede da missão, levando consigo o pessoal timorense que nos tinha acompanhado ao longo daqueles meses. A sede da missão, desnuda de qualquer segurança, foi invadida por 30 observadores oficiais e dezenas de timorenses.
Passámos a tarde debaixo de fogo e sob a ameaça iminente de uma invasão da casa pelas milícias. Dada a evidente falta de vontade do Governo indonésio para nos proteger e a completa incapacidade do Governo português em nos dar qualquer tipo de ajuda, o chefe da missão, depois de consultar Lisboa, conseguiu que a UNAMET assumisse o compromisso de nos receber na sua sede, um extenso edifício e terreno murado, onde havia cerca de uma centena de militares das Nações Unidas mais 100 funcionários civis. Foi para aí que nos dirigimos numa Díli já a arder e sob tiroteio, sendo recebidos à chegada por uma saraivada de tiros vindos da estrada próxima que fizeram várias vítimas entre os timorenses, muitos dos quais debandaram.
Ao longo dos dias seguintes, a cidade de Díli transformou-se num cemitério deserto e as dificuldades da UNAMET em conseguir aceder aos seus depósitos de comida e outras necessidades acentuaram-se ao ponto de se ter entrado em racionamento de água para beber. No dia 8 de Setembro, o chefe de missão da UNAMET comunicou à missão portuguesa que havia a possibilidade iminente de evacuar toda a gente para a Austrália, incluindo os timorenses, e que se não aproveitassem a boleia não haveria outra, nem haveria onde ficar, uma vez que a cidade de Díli estava a arder.
A escolha era, portanto, entre ficar em Díli sem ter onde e à mercê das milícias, ou aproveitar a evacuação do seu pessoal que a UNAMET ia levar a cabo. Compreende-se que o Governo de Lisboa tivesse preferido que alguém da missão portuguesa ficasse em Díli. Mas era evidente que a missão, enquanto tal, não poderia subsistir a uma evacuação da UNAMET.
Foi assim que o Governo português acabou por determinar a saída de toda a gente, a 10. A missão portuguesa foi evacuada juntamente com a UNAMET para Darwin, na Austrália, e levou consigo dezenas de timorenses do seu staff e respectivas famílias. Estes são os factos. Na minha opinião, não vejo que um chefe de missão responsável, que tinha a responsabilidade da segurança e vida de dezenas de pessoas, pudesse ter tomado outra decisão ou aconselhado Lisboa em sentido diferente.
José Júlio Pereira Gomes e os outros 29 membros da Missão de Observação Portuguesa foram os únicos portugueses não militares, que me lembre, que em décadas puseram as suas vidas em risco — e puseram — ao serviço do Estado português. Regressados a Portugal, mais ninguém se lembrou deles e ninguém se lembrou de lhes enviar ao menos um cartão de agradecimento.