Uma campanha literária para alemão ler
Por iniciativa da embaixada de Portugal em Berlim, oito autores portugueses estiveram na Feira do Livro de Leipzig, que encerrou no domingo. Não faltaram leitores interessados em ouvi-los, mas convencer os editores alemães pode revelar-se bastante mais difícil.
Às 10h30 da manhã da passada quinta-feira, o pequeno auditório internacional ao pé do pavilhão português da Feira do Livro de Leipzig já acolhia um inesperado número de leitores alemães interessados em ouvir Patrícia Portela, uma escritora e autora de espectáculos teatrais, performances e instalações que vem publicando alguns dos mais insólitos objectos da ficção portuguesa contemporânea, como O Banquete (2012) ou A Colecção Privada de Acácio Nobre (2015), nenhum deles ainda traduzido em alemão. Foi a primeira sessão de um intensivo programa de conversas e leituras com escritores portugueses em Leipzig, promovido pela embaixada de Portugal em Berlim com o apoio da Direcção-Geral dos Arquivos, do Livro e das Bibliotecas (DGALB) e da Casa Fernando Pessoa.
É provável que no final da conversa de Patrícia Portela com o tradutor alemão Michael Kleger nem todos os presentes tenham ficado com uma noção muito clara do que possa ser a sua obra ficcional (perplexidade que, aliás, a leitura dos livros felizmente não atenua), mas alguns ter-se-ão sentido tão intrigados com a biografia desse estranho Acácio Nobre que o mais certo é terem saído dali para googlar nos telemóveis o nome do protagonista electivo da autora: um homem que viveu na Alemanha, criou puzzles geométricos para uma empresa alemã, procurou convencer as autoridades portuguesas, no final da monarquia, a adoptar a pedagogia de Friedrich Fröbel e, last but not the least, foi o injustiçado inventor do primeiro jogo de vídeo.
Quer na Feira do Livro, que encerrou no domingo, quer em bares da cidade com programação literária e musical, como o Club Telegraph ou o café Tunichtgut, o público de Leipzig pôde contactar com oito escritores de língua portuguesa, alguns já traduzidos na Alemanha, como Mia Couto e Gonçalo M. Tavares, outros ainda por traduzir, como o angolano Kalaf Epalanga, os poetas Margarida Vale de Gato, Raquel Nobre Guerra e Miguel Cardoso, ou ainda Dulce Maria Cardoso, a autora de O Retorno (2011), de quem Michael Kegler disse numa das sessões: “Não conheço nenhum texto dela que não mereça ser traduzido."
O programa incluiu ainda, na sexta-feira, a pré-apresentação do guia literário Ler e Ver Lisboa, que partiu de uma ideia de Patrícia Portela e Afonso Cruz e que reúne textos e ilustrações de 40 escritores e artistas gráficos. O livro tem já edição prevista na Alemanha, e para esta sessão em Leipzig foram expressamente traduzidos os textos que para ele escreveram Gonçalo Tavares, Kalaf Epalanga e a própria Patrícia Portela.
É a segunda delegação de autores que a embaixada de Portugal em Berlim leva a Leipzig, numa tentativa de aproveitar uma feira do livro de grande dimensão, mas frequentada por um público generalista e mais focada nos autores do que a de Frankfurt, para ir convencendo o mercado editorial alemão a interessar-se por uma literatura ainda muito pouco traduzida no país. “É um trabalho de persistência”, diz ao PÚBLICO Patrícia Severino, conselheira cultural na embaixada de Berlim, acrescentando que esta estratégia tem sido complementada com o convite a editores alemães para visitarem a Feira do Livro de Lisboa.
A missão não é fácil. Se o número de leitores interessados em ler obras portuguesas no original é o suficiente para permitir a subsistência da livraria e editora TFM, em Frankfurt, especializada em livros e discos de língua portuguesa, são muito poucos os editores alemães que se arriscam a traduzir e publicar autores portugueses, para lá dos casos de sucesso mais ou menos garantido, como Pessoa ou Saramago. Petra Noack, que dirige a histórica livraria fundada por Teo Ferrer de Mesquita, explica que, para lá dos circuitos académicos, “há hoje muitos alemães que estão a aprender português porque passam férias em Portugal”. Tudo somado, não deixa de ser “um mercado pequeno, um nicho”, reconhece, mas como a TFM é a única livraria alemã especializada em língua portuguesa, tem conseguido aguentar-se.
O problema da tradução
Marianne Gareis, que traduziu para alemão dois livros de Gonçalo M. Tavares – A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém, ambos de 2004 –, lamenta que os editores alemães arrisquem pouco em autores portugueses. “As traduções são sempre um custo, e só avançam quando estão mesmo convencidos”, diz. “Gostei muito de Nenhum Olhar, de José Luís Peixoto, mas já tentei várias editoras e não consegui nada”, acrescenta.
Nicole Witt, que dirige a prestigiada agência literária fundada em 1982 por Ray-Güde Mertin (1943-2007), tradutora de Saramago e dos primeiros livros de Lobo Antunes, confirma que “a língua portuguesa continua a ser infelizmente um obstáculo”. E se acredita que “havendo qualidade, um livro acaba, em algum momento, por encontrar quem o edite”, avisa que “pode demorar bastante tempo”. A agente, que representa quatro dos autores que integraram esta embaixada literária a Leipzig – Mia Couto, Gonçalo M. Tavares, Dulce Maria Cardoso e Kalaf Epalanga –, salienta a importância de iniciativas como esta: “É um pretexto para lembrarmos a um editor uma tradução que já lhe tínhamos enviado de algum dos autores presentes, e para a qual ele se calhar não tinha ainda olhado bem, porque a grande arte da nossa profissão é conseguir que os livros sejam lidos pelos editores."
Um dos objectivos de Nicole Witt é agora conseguir que Gonçalo M. Tavares tenha na Alemanha o mesmo sucesso que está a ter noutros países. Dois livros seus até já saíram numa chancela importante, a DVA, do grupo Random House, mas não tem sido fácil prosseguir a edição da sua extensa obra na Alemanha. E no seu caso, se o nome do autor e a língua utilizada podem constituir uma barreira, a obra até se aproxima mais de alguma literatura em língua alemã do que da generalidade da ficção portuguesa.
Enchente de público
Apesar de todos estarem de acordo que não é fácil publicar autores portugueses na Alemanha, estes dias em Leipzig mostram que há algum interesse dos leitores, já que as 12 sessões organizadas pela embaixada tiveram sempre público, e algumas excederam largamente os lugares sentados disponíveis, como a de Mia Couto – é a única verdadeira estrela internacional do grupo: até o funcionário a quem mostrava o cartão de embarque para entrar no avião, em Lisboa, lhe pediu um autógrafo –, mas também, e mais surpreendentemente, a que reuniu os três poetas portugueses a outros tantos poetas alemães no café Tunichtgut. E como ninguém sabia de antemão que Miguel Cardoso ia cantar a capella um excerto da Canção do desterro, de José Afonso, a enchente de público tem de ter outra explicação.
Na impossibilidade de relatar, mesmo resumidamente, longas horas de conversas e leituras com oito autores, deixam-se aqui dois momentos divertidos. O primeiro foi aquele em que o fundador dos Buraka Som Sistema, Kalaf Epalanga, hoje radicado em Berlim e em vias de concluir o seu romance de estreia, contou de viva voz um episódio verídico que já relatara numa das crónicas que escreveu para o PÚBLICO, reunidas no volume O Angolano Que Comprou Lisboa (por Metade do Preço): esse instante em que não resistiu à tentação de deixar que o dono de uma tasca de Lisboa, impressionado pelo seu vestuário de corte irrepreensível e ar dispendioso, se convencesse de que ponderava mesmo adquirir-lhe o estabelecimento. “Uma pessoa normal tinha-lhe logo dito ‘desculpe, está enganado, não tenho dinheiro’, mas é aí que começa a essência do angolano: fiz exactamente o contrário e fiquei ali meia hora a ouvir o senhor explicar as qualidades do espaço, a cozinha que tinha renovado…”. O segundo foi a descrição de Mia Couto dos 20 minutos que passou, numa visita a Nova Iorque, a tentar convencer a assistência de que era mesmo Mia Couto, ou mais precisamente de que Mia Couto era mesmo ele, e não “a mulher negra de que toda a gente estava à espera”.
Há ainda um terceiro, mas que talvez não devesse ser contado, uma vez que é um episódio de bastidores, ocorrido antes de um excelente jantar no famosíssimo restaurante Auerbachs Keller, já citado num documento de 1438, e que Goethe viria a tornar ainda mais célebre, imortalizando-o no seu Fausto. Além dos embaixadores de Portugal e Moçambique, estava presente o vice-presidente da Câmara de Leipzig, o social-democrata Thomas Fabian, que na juventude viveu alguns anos em Portugal. Informado de que o jornalista presente trabalhava no PÚBLICO, perguntou: “Não é o jornal que publicou aqueles livros sobre fado?”. E explicou que tinha um amigo em Lisboa que lhos ia enviando. “Gosta então muito de fado?”, perguntámos. “Sim, quer dizer, gosto de muita coisa…”, respondeu o autarca da cidade onde Bach viveu e morreu, acrescentando: “Por exemplo, dos Mão Morta."
O PÚBLICO viajou a convite da Embaixada de Portugal/Camões em Berlim