O que é afinal “ser holandês”?

O país que a Europa considerava tolerante e cosmopolita vai dar o primeiro ou o segundo lugar nas eleições a um partido de extrema-direita. Os cidadãos sentem os seus valores ameaçados – mas a percepção não corresponde à realidade.

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Exposição de véus islâmicos no museu histórico de Amesterdão, em 2006 Reuters

A identidade é o tema dominante na campanha holandesa. Pode um muçulmano ser holandês, por mais integrado que esteja? Ou tem de provar sempre que está integrado? E o que é afinal ser holandês?

Muitos holandeses têm dificuldade em definir a sua identidade. Talvez por isso exista um sentimento de ameaça a essa frágil ideia. Essa ameaça vem de pessoas que falam outras línguas e se apresentam de modo diferente. A que valores são leais? 

A recente polémica sobre a insistência de políticos turcos fazerem na Holanda campanha para o referendo na Turquia — e as manifestações de turcos — deixou claro que muitos holandeses de ascendência turca sentem uma fidelidade em relação a Ancara e ao líder pouco democrático Recep Erdogan. Todo este caso ajudou o político de extrema-direita Geert Wilders, que fez da identidade — e da rejeição do estrangeiro, sobretudo muçulmano — a base da sua campanha para as eleições de amanhã. O Partido da Liberdade (PVV, de Wilders) já esteve à frente das sondagens, mas perdeu terreno e está agora em segundo nas intenções de voto, depois do Partido da Liberdade e da Democracia do primeiro-ministro, Mark Rutte (entre 23 e 27 deputados para Rutte, entre 19 e 23 para Wilders). Não deverá participar na coligação que vai governar a Holanda, mas ser o primeiro ou segundo partido mais votado é significativo num país que a Europa se habituou a ver como de costumes tolerantes, abertos e cosmopolitas. 

Wilders tem repetido nos seus tweets nesta recta final da campanha: “Isto é a nossa terra.”

O hijab

Um dos símbolos da discussão é o hijab, o véu islâmico criticado por muitos por ser um símbolo de opressão da mulher, algo contrário à cultura holandesa. Wilders propôs mesmo um “imposto sobre o trapo na cabeça”.

Ironicamente, é holandesa a designer que começou a comercializar um tipo especial de hijabs, o de desporto — está a tornar-se de tal forma mainstream que a Nike anunciou, na semana passada, que vai começar a vender estes véus desportivos.

Cindy van den Bremen interessou-se pelo hijab em 1999, quando terminava o curso de Design. Deparou-se com um caso em tribunal, o de uma aluna que fora expulsa de uma aula de ginástica porque o professor tinha dúvidas quanto ao véu. A designer decidiu que havia mercado para um novo produto. “Ninguém ligou nenhuma”, conta no atelier da sua marca, a Capsters, na cidade de Eindhoven. Mas tudo mudou: fundou a Capsters, começou a vender para todo o mundo e é hoje a marca líder no segmento. O seu hijab faz parte da colecção permanente do MoMA, em Nova Iorque.

Adepta da ideia de co-design (desenhar com quem vai usar o produto), Van den Bremen, uma mulher loira, branca, alta — a típica holandesa? —, passou muito tempo com muçulmanas com véu. Interessou-se por elas e pelos seus motivos. “Uma contou-me que decidiu usar hijab depois de a mãe morrer. Outra foi porque se sentia mais protegida.”

Porém, explica, ninguém vê as mulheres de véu como um grupo diverso. “O véu faz qualquer coisa ao cérebro de quem olha e transforma a mulher numa pessoa oprimida”, explica a designer. “E se for oprimida? Vamos reduzir-lhe ainda mais as hipóteses de participação na sociedade? Ou vamos dar-lhe mais? A exclusão só beneficia quem oprime. Para mim, uma rapariga que se destaca no desporto com hijab está a dizer: quero-me integrar, mas sem esquecer aquilo em que acredito.”

A liberdade da mulher

Quanto à liberdade de a mulher ser um valor holandês, Van den Bremen contrapõe: “E as protestantes ortodoxas, que só podem usar saias compridas, ninguém as quer libertar?” A preocupação com as mulheres parece aumentar se a opressão é feita por muçulmanos ou imigrantes.

O sociólogo Jan Willem Duyvendak, da Universidade de Amesterdão, também questiona o argumento de a liberdade da mulher ou de os direitos dos homossexuais serem valores tradicionais holandeses. Numa entrevista ao diário De Volkskraant, disse que estes devem ser defendidos, mas como direitos humanos. O sociólogo nota que a visão sobre direitos das mulheres e homossexuais dos eleitores de Wilders e dos muçulmanos holandeses é bastante aproximada.

A islamização da Holanda de que tanto tem falado Wilders não está a acontecer. Como em muitos países, a percepção não corresponde à realidade: segundo uma sondagem recente, em média, os holandeses acreditam que 19% da população é muçulmana. Na verdade, só 5% o é. Dos 17 milhões de holandeses, há 3,8 milhões com ascendência estrangeira. Mas, entre os imigrantes, marroquinos e turcos destacam-se.

Duyvendak indica outros dados dos estudos: as novas gerações de muçulmanos na Holanda vão-se tornando mais progressistas do que os seus pais. E, no panorama europeu, os muçulmanos holandeses também são ligeiramente mais progressistas do que noutros países.

Num café de Amesterdão, Raymond Querido, da companhia de teatro Dood Paard, mexe-se na cadeira quando ouve a pergunta sobre identidade. “Não penso muito na minha identidade holandesa. Não temos muito patriotismo, não vemos bandeiras, nem hino.”

A tolerância

Querido — nome de família de judeus portugueses expulsos pela Inquisição — vê um lado positivo em tudo. Considera que é mais saudável uma discussão aberta sobre identidade e racismo. “Assim podemos tentar contrariar estas ideias.”

Se não se sente muito holandês, de vez em quando algo lembra a Querido que a Holanda é um país privilegiado para ele, que é homossexual e com uma amiga tem a guarda partilhada de uma criança. “Li que em França uma solteira ou lésbica não pode fazer inseminação artificial e pensei: é bom viver aqui!”

Apesar de viver num bairro muito multicultural e com muitos muçulmanos, nunca se sentiu olhado de lado por ter um parceiro. “Há outro casal, que anda de mãos dadas, e nunca houve problema.” Querido diz que este foco da discussão da identidade o incomoda: “Parece que os imigrantes têm de estar sempre a provar que são holandeses.”

Mas a mudança nos prédios, ruas, ou bairros é muitas vezes apontada como motivo de desconforto para quem vê tudo a acontecer muito depressa. “Há muita gente que é confrontada com pessoas vindas da Turquia, de Marrocos, que não se integram bem, que estão mais ligados à comunidade de onde vêm — uma ligação simbolizada por esses pratos de satélite para verem a televisão do seu país”, nota Remko van Broekhoven, professor de Filosofia Política na Universidade de Utrecht que falou ao PÚBLICO por telefone.

“Há problemas sobretudo de jovens marroquinos que estão por vezes presentes de um modo muito irritante. É fácil ser tolerante quando se está numa carruagem de comboio onde estão todos quietos e calados, mas experimentem ser tolerantes quando entra alguém aos gritos”, desafia o professor. Conclui explicando que “uma certa reputação das elites, dos media, de que a Holanda é um país tolerante, aberto e cosmopolita” também foi, “de algum modo, um ambiente opressivo para quem não se sente assim tão tolerante”.

Para Cindy van den Bremen, os “cidadãos zangados”, que temem a diversidade, e os imigrantes, não são assim tão diferentes: “Todos têm o mesmo medo de não serem aceites.”

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