Gritos de “unidade” no congresso de todas as divisões no Podemos

Iglesias vai ser reeleito com largo apoio, mas no conclave do tudo ao nada, a nova força da esquerda pode ficar sem secretário-geral. Dois anos depois, quer inspirar pela diferença ou atrair pela confiança?

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Pablo Iglesias e Íñigo Errejón abraçaram-se no arranque do congresso do Podemos, em Madrid LUSA/CHEMA MOYA

Depois da “máquina de guerra eleitoral”, a formação que rompeu o bipartidarismo espanhol celebra a sua segunda Assembleia Cidadã em plena crise existencial. Num confronto que divide o partido, Pablo Iglesias e o seu “número dois”, Íñigo Errejón, reivindicam o espírito do “Podemos original” e concorrem com listas alternativas para a direcção (Conselho Consultivo) e resoluções de estratégia opostas para o futuro. É esse futuro, como o de ambos, que se joga estes dias no Palácio Vistalegre de Madrid.

Sábado, os dirigentes subiram ao palco entre gritos de “Unidade, Unidade, Unidade!” e “Sim, Podemos” no grande auditório onde se discursou e domingo se vão conhecer os resultados das votações. Mais de 10 mil militantes acorreram à chamada e estão no Vistalegre II – a reunião fundadora, onde se elegeu o secretário-geral e se deu uma ampla maioria à sua ambição de “tomar o céu por assalto”, foi o Vistalegre I.

As europeias de Maio de 2014 – seis deputados com quatro meses de existência – foram a primeira prova de vida de um projecto político que só fecharia lideranças e manifestos em Outubro desse ano, no lugar onde agora voltam a reunir-se líderes e bases. Tanto se passou entretanto em Espanha; entre esse tanto, há o Podemos, que irrompeu num panorama partidário congelado desde a Transição e se tornou incontornável na nova realidade política.

“O céu não se toma por consenso: toma-se por assalto”, afirmou Iglesias no primeiro Vistalegre. Foi a 18 de Outubro de 2014, há pouco mais de dois anos. Espanha viveu em sobressalto eleitoral grande parte do tempo que dista entre estes dois encontros. Em Março de 2015, houve eleições antecipadas na Andaluzia; dois meses depois, votou-se em 13 regiões autonómicas e em todos os municípios; em Dezembro, chegaram as legislativas que acabariam por não permitir formar Governo e levar ao regresso às urnas, em Junho do ano passado.

De acordo com os estatutos, uma Assembleia Cidadã Estatal como a deste fim-de-semana (há assembleias em todas as cidades com mais de 100 mil habitantes) só se repetiria em Outubro, três anos depois da primeira. Mas o partido decidiu que precisa de novas orientações, agora que acabou a corrida mais louca e se estacionou a “máquina de guerra eleitoral” accionada no Vistalegre I.

Ser ou não ser o PSOE

As diferenças entre Iglesias, tão conhecido e carismático que o Podemos começou por se confundir consigo, e Errejón, porta-voz do grupo parlamentar desde Junho, membro do Conselho de Coordenação com a pasta da Secretaria Política e coordenador de todas as campanhas eleitorais do partido, começaram por se tornar visíveis no debate sobre a relação do partido com os socialistas.

Antes das legislativas de Junho, Errejón opôs-se à coligação com os comunistas e ecologistas da Esquerda Unida, uma união imposta por Iglesias e que se mantém, apesar de as urnas a terem chumbado, já que os dois partidos obtiveram menos votos juntos do que em separado. Em Dezembro, a votação das bases para decidir o modelo do Vistalegre II afastou-os definitivamente. Desde então, trava-se uma guerra pública pela alma do Podemos, com vários fundadores ao lado de Errejón.

Iglesias insiste na ideia de um partido “com um pé no Parlamento e mil pés na sociedade”, nascido dos Indignados e da sua revolta contra as elites e os poderes instalados. Na sua moção de estratégia política, Podemos para Todas, defende-se que uma formação que teve sucesso por ser diferente deve recusar “camuflar-se” ou atrair o eleitorado dos outros, “bem-vindo” se assim o entender. As instituições “atrapalham”, lê-se no documento. “Não somos o PSOE.”

Errejón, que chamou à sua candidatura Recuperar a Ilusão, critica a “falta de iniciativa” da direcção, que responsabiliza pela perda de algumas das suas bandeiras para o PSOE no Parlamento – Iglesias diz que só pode ser uma autocrítica, já que o ex-companheiro de tertúlias é o responsável máximo pela acção parlamentar do partido que ambos fundaram. “Seduzir” é que Errejón quer fazer ao eleitorado socialista, ao mesmo tempo que quer puxar os deputados do PSOE para as suas posições no Parlamento.

“Há uma aposta política muito firme por sermos úteis ali, onde estamos”, sustenta Errejón. “Quer dizer, por não sermos um partido de protesto, mas um partido que faz algo muito mais radical: demonstrar aos espanhóis que sabemos denunciar o que não funciona e que, para além disso, estamos em condições de assumir as rédeas do nosso país, que o nosso país nos imagine a governar mesmo antes de termos a maioria para o fazer.” Um partido “mais transversal”, pede.

Transversalidade e diferença

O tom de guerra civil subiu. Errejón acusou Iglesias de “viragem ideológica” que “desligou” o partido de muitos espanhóis. Alguns dos seus apoiantes, ex-próximos de Iglesias, escreveram sobre a “patrulha” de “conspiradores” que terá sequestrado o líder e quer “destruir o projecto”. O secretário-geral criticou o “complexo de Adão” de reivindicar “o Podemos original” e a “busca de fantasmas” e “bodes expiatórios” para “desacreditar ideias de outros”, em vez do “confronto político de ideias”. Também disse que o amigo “mudou tanto” que até “se veste de outra maneira”.

“Há debates que deveríamos ter dentro de casa e não nos media”, afirmou Iglesias numa das inúmeras entrevistas da última semana. “É bom ser transparente mas não precisamos de ser ingénuos. Ainda somos uma força política nova que está a amadurecer, e precisamos de sair deste congresso mais fortes e unidos.”

Os últimos dias não foram brilhantes, com a facção de Errejón a tentar impedir que a Assembleia Cidadã abrisse com um discurso de Iglesias. A vontade do líder impôs-se e este arrancou o encontro com um aviso directo: “O ensimesmamento e a divisão trabalham para o inimigo”, afirmou, entre mais gritos de “Unidade, Unidade” dos militantes. “A transversalidade não é parecermo-nos aos velhos partidos”, disse, em resposta às teses do adversário. “É preciso que nos pareçamos às pessoas que trabalham.”

Errejón também apelou à unidade, mas insistiu no trabalho a partir das instituições, onde o Podemos já conseguiu “mudar muito a cultura política” mas falta obrigar os “velhos partidos” a querer parecer-se à nova formação. Acima de tudo, defendeu, o partido tem de inspirar “confiança” a “todo o nosso povo, seja qual for o seu voto”.

O bloco de Iglesias acredita que vai ganhar o embate e vê nas votações de Dezembro, quando a proposta de Errejón obteve 38,12% contra os 41,57% da apresentada por Iglesias, o melhor momento do adversário. Se eleger menos um membro para a direcção do que a lista rival ou se perder a votação das moções, Iglesias deixa a liderança. Errejón insiste que não deseja ocupá-la. “Se Errejón não quiser assumir o que as pessoas decidem, o problema é dele”, responde Iglesias. A partir de segunda-feira, prometeu Errejón, vai haver “mais Podemos, mais unidos e mais fortes”. Não se avizinha tarefa fácil.

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