O Festival da Canção quer ser grande outra vez – e que as canções sobrevivam
Edição de 2017, a 51.ª, terá compositores como Samuel Úria ou Rita Redshoes e muitos participantes de concursos como o The Voice. Será também a grande festa, algo rétro, dos 60 anos da RTP.
O Festival da Canção quer ser grande outra vez e depois de algumas interrupções, nomeadamente em 2016, volta este ano para ser a festa dos 60 anos da RTP. No tempo do MySpace, aquela rede social que também lançava músicos, tentou fazê-lo indo buscar compositores conhecidos. Estávamos em 2007 e José Cid, Kalaf Ângelo ou Emanuel davam uma ajuda. Dez anos depois, Samuel Úria, Rita Redshoes, Luísa Sobral ou Noiserv compõem para jovens cantores, alguns veteranos regressam e até Júlio Isidro vem presidir ao júri.
Na apresentação da edição de 2017, na manhã desta quinta-feira no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, Júlio Isidro reluzia em pleno efeito vintage, mas com direito a uma alfinetada a Donald Trump entre as recordações de edições apresentadas no passado, e dezenas de músicos portugueses ocupavam a plateia. Quer ser “uma janela renovada para a música portuguesa”, outra vez, e “um festival de canções”, descreve Daniel Deusdado, director de programas do canal sexagenário que decidiu realizar a 51.ª edição de um evento que se confunde com a estação pública mas que também perdeu o seu poder aglutinador de outrora, seja como evento televisivo seja como plataforma de divulgação musical.
Vale a pena insistir no Festival da Canção, independentemente da oportunidade da ida ao Festival da Eurovisão (este ano na Ucrânia, sob o tema da diversidade), da concorrência da Internet ou dos concursos de talentos televisivos como os que alimentam parte do elenco de intérpretes da edição de 2017 do festival? Sim, responde ao PÚBLICO. É uma “marca extraordinária”, e mesmo sendo verdade que “no passado já ninguém acreditava muito que participar no festival desse prestígio”, prossegue, este “recuperar de velhas marcas pelas novas gerações” é, acredita, “algo completamente sintonizado com o tempo". O rétro, continua, "é hoje bastante mais interessante do que era há uns tempos”.
Nuno Figueiredo (Virgem Suta) convidou Jorge Benvinda, também dos Virgem Suta, a interpretar a sua canção; Celina da Piedade cantará o seu próprio original, tal como Márcia; Lena D’água vai interpretar o tema composto por Pedro Silva Martins (Deolinda); João Só, pela terceira vez a compor para o evento, entregou o seu tema a Helena Kendall; outra participante do The Voice Portugal, Beatriz Felício, vai interpretar a composição do veterano Jorge Fernando e Tóli César Machado, dos GNR, escreveu para outro participante do concurso da RTP, David Gomes. Tóli vê um festival a tentar ter “o glamour” de outros tempos, com um leque variado de compositores e novas vozes com “mais potencial” para “chamar a atenção das pessoas que vêem TV” e para contribuir para a carreira dos intérpretes. O seu convidado “espera conseguir prosseguir com a carreira”, explica. Mas com tantos talent shows no ar, qual é o papel de divulgador e festa televisiva do festival? “É mais interessante ainda porque quem ganha estes concursos fica num limbo de carreira artístico e o festival é um factor de nova exposição”, defende Deusdado.
“O Festival da Canção foi sempre um programa familiar para mim”, recorda Rita Redshoes, cujo tema será cantado pela vencedora da terceira edição do The Voice, Deolinda Kinzimba. É a primeira vez, tal como no caso de Noiserv, que Rita Redshoes escreveu para outra pessoa. Ela encontrou a sua intérprete num karaoke do jantar de Natal da editora que partilham, ele teve uma certeza inicial – escrevia para uma “voz feminina". "Porque se fosse masculina a luta comigo seria ainda maior”, admite o cantautor. Escolheu Inês Sousa e garante que não fez cedências no seu estilo e nada mudou. Ao contrário do que aconteceu ao festival e à cena musical – “O festival caiu um bocadinho em desgraça e as pessoas acabaram por se afastar do programa”, anui Rita Redshoes, com Noiserv a admitir que, com os seus 34 anos, não sentiu influências recentes do evento. Valoriza sim as “músicas muito boas” das décadas de 1960, 70 e 80. O seu objectivo é fazer como eles: que as novas canções “tenham uma vida para além do festival”.
Como Ele e ela, E depois do adeus, Playback ou Chamar a música tiveram. São os exemplos dados por Pedro Gonçalves, 19 anos, escolhido para interpretar a canção de João Pedro Coimbra, dos Mesa, que consumiu o festival através da via em que ele próprio se celebrizou – o YouTube. É um dos youtubers mais populares do país e também um finalista da terceira edição do The Voice Portugal. “Cresci a ver o Festival da Canção, os vídeos no YouTube, as grandes produções, as orquestras gigantescas”, enumera, fã sobretudo do período pré-25 de Abril. Mesmo tendo vindo de um talent show e de uma das plataformas de divulgação de músicos mais populares da última década, diz sem hesitar: “O Festival da Canção é o ponto mais alto da minha carreira." Gostava de representar o país na Ucrânia, vai cantar em inglês, mas também tem a estratégia coordenada para o pós-festival. Há vários temas originais e novos para lançar.
Um dos membros dos The Gift, Nuno Gonçalves, convidou o trio que participou noutro talent show, o Factor X (SIC), os Viva La Diva, Salvador Sobral cantará o que a irmã, Luísa Sobral, compôs para ele e Rui Drumond, um rosto da Operação Triunfo, foi escolhido por Héber Marques (dos HMB) para interpretar a sua canção. Pedro Saraiva escolheu Lisa Garden. Outro veterano do festival, Nuno Feist, convida Fernando Daniel, vencedor da quarta edição do The Voice, e as Golden Slumbers cantarão o que Samuel Úria propôs. Este figurino renovado do Festival da Canção teve como consultores os jornalistas e divulgadores musicais Nuno Galopim e Henrique Amaro, e terá um júri que vai incluir nomes como Dora, o musicólogo João Carlos Callixto, Ramon Galarza, Nuno Markl ou Inês Menezes.
O festival sofreu três hiatos – entre 2002 e 2005, em 2013 e 2016 – e Daniel Deusdado diz ter recebido “protestos” pela ausência no ano passado. Nos próximos anos haverá mais e novos convidados, diz Guilherme Madaíl, subdirector de programas do canal. Um evento que corre atrás do que já foi também como appointment viewing, um evento imperdível que juntava o país, primeiro, e a Europa, na grande final frente ao televisor desde que António Calvário cantou Oração em 1964. O melhor lugar conseguido para Portugal na Eurovisão foi o sexto com O Meu coração não tem cor, de Lúcia Moniz em 1996 e os Homens da Luta marcaram a era da troika com Luta é alegria em 2011, entre muitos outros momentos.
Agora haverá duas meias-finais nos domingos 19 e 26 de Fevereiro e o cerne da festa de aniversário, a 5 de Março. Há que "fazer uma boa gestão de recursos, não estamos num tempo em que possamos ter dois eventos gigantescos", explica Deusdado. Os 60 anos da RTP terão três dias de comemorações televisivas até à data redonda, dia 7, explicou Guilherme Madaíl. Haverá homenagens, trabalhos do Real Combo Lisbonense e de Francisco Rebelo (Orelha Negra, Cais do Sodré Funk Connection), surpresas e Catarina Furtado e Sílvia Alberto na apresentação.