E se Lisboa fosse assim...
São 500 anos de projectos abandonados numa exposição. Duzentas propostas para Lisboa que, se tivessem sido construídas, teriam acabado com boa parte da cidade histórica tal como hoje a conhecemos. Consegue imaginar o Rossio parecido com o Marquês de Pombal?
1934. Um Rossio sem valor arquitectónico leva a Câmara de Lisboa a lançar um concurso para a total reformulação da praça. 1962. Gente megalómana encomenda um Hotel Hilton que faz o Museu Militar parecer uma autêntica formiga. 1963. Outros, deslumbrados com o automóvel, propõem uma quase auto-estrada para rasgar o Parque Eduardo VII em direcção ao norte. 1967. Nova via rápida, ladeada por torres, está prevista para o Martim Moniz.
Todos estes projectos, que na actualidade nos deixam a sorrir ou mesmo indignados, podem ser vistos a partir de hoje no Museu de Lisboa na exposição A Lisboa Que Teria Sido, com inauguração marcada para as 19h. Mostra cerca de 200 projectos urbanísticos e arquitectónicos para a capital que nunca chegaram a ser construídos e tem como comissários António Miranda, da Direcção de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, e Raquel Henriques da Silva, da Universidade Nova de Lisboa.
ara o novo Rossio de 1934, o arquitecto Carlos Ramos, pai da Escola do Porto e autor dos edifícios da actual Praça Marquês de Pombal, “propõe a ruptura absoluta com a praça reconstruída depois do terramoto de 1755”, comenta António Miranda. “É a arquitectura moderna a funcionar em pleno.” Já o arquitecto Cottinelli Telmo, outro pioneiro do modernismo que fez o plano da Exposição do Mundo Português nos anos 40, desenhou oito arcos de triunfo para coroar as esquinas dos quarteirões, mais um conjunto de galerias porticadas a toda a volta — uma solução que teria dado ao Rossio, ao nível do piso térreo, uma estrutura semelhante à do Terreiro do Paço.
Entre os 11 projectos apresentados para a mesma emblemática praça da cidade, um é de M. Rocha Casquilho (“foi engraçado descobrir uma série de arquitectos com a exposição”) e quer “barroquizar” a praça, continua o comissário. “O concurso é lançado porque o Rossio, tal como toda a Baixa pombalina, é considerado monótono e triste, dado o seu depuramento. Quando a câmara vê o resultado do concurso, fica um pouco atrapalhada. Não dá o primeiro prémio e o segundo vai para Cottinelli Telmo. Acabou por não haver coragem para avançar.”
Os 200 projectos escolhidos pelos comissários para A Lisboa Que Teria Sido são “uma pequeníssima amostra” do que há nos arquivos da câmara e no espólio do museu. A exposição recorreu também a arquivos privados, como o da Gulbenkian ou o dos herdeiros do atelier Carlos Ramos, e centrou-se em quatro zonas da cidade: as torres da frente ribeirinha, o eixo central — da Praça do Comércio ao Parque Eduardo VII (com um desvio para o Martim Moniz) —, as pontes sobre o Tejo e as portas da cidade. Vai do século XVI ao século XXI, com uma primeira paragem em Francisco de Holanda (a partir da sua famosa obra, publicada em 1571, Da Fábrica Que Falece à Cidade de Lisboa) e uma última nas torres projectadas para Alcântara, em 2003, por Álvaro Siza, a figura tutelar da arquitectura portuguesa.
Citando o humanista e artista renascentista, as obras que faltam à cidade de Lisboa são as capazes de enobrecer a capital com uma escala monumental. “Francisco de Holanda é o primeiro a reflectir sobre esta ausência de monumentalidade de uma cidade que tinha crescido organicamente em função da sua geomorfologia. Além de um ou outro monumento disperso, como o Paço Real lá em cima, que vemos num dos seus desenhos, a capital enquanto todo não se cumpria como grande cidade.” Holanda propõe, por exemplo, dois chafarizes monumentais para o Terreiro do Paço e o Rossio e uma grande muralha para Lisboa.
A monumentalidade nunca foi visível para os que olhavam e reflectiam sobre a capital, mesmo com o que foi erguido depois do terramoto no século XVIII. “As pessoas apenas reconheciam monumentalidade e grandeza à Praça do Comércio. Estamos perante uma cidade que nunca cumpriu os tais desígnios de ter uma grande avenida.” É por isso que Eça de Queirós chama em Os Maias à nova Avenida da Liberdade que surgiu no século XIX “um curto rompante de luxo barato”.
Um parque urbano
Durante quase um século, depois de já ter sido rasgada a Avenida da Liberdade, Lisboa andou às voltas, de uma forma obsessiva, com aquilo que é actualmente o Parque Eduardo VII. Foi logo em 1887 que a cidade, desejosa de ter um parque urbano como as outras capitais europeias, lançou um concurso internacional para a sua construção. Chamou-lhe Parque da Liberdade, porque vinha substituir, de certa maneira, o Passeio Público que a Avenida da Liberdade ocupara com a sua forma de boulevard de um quilómetro de comprimento, num projecto assinado por Ressano Garcia.
“O concurso de 1887 foi ganho por um francês, Henri Lusseau, que fez um jardim romântico onde dominam as linhas curvas. O projecto do Parque da Liberdade é um antepassado do Parque Eduardo VII, nome que passa a ter logo em 1903, mesmo antes de estar construído”, diz António Miranda. O parque tem um pavilhão de exposições, café-concerto, quiosques, teatro, zoo e aquário, mas Lusseau não consegue chegar a acordo com a cidade e, logo em 1899, há um engenheiro da câmara, António Maria Avelar, que adapta o projecto.
A maqueta da proposta de Lusseau que encontramos no Museu da Cidade, guardada numa grande caixa de madeira e vidro, é mandada fazer em 1922 pela Câmara Municipal de Lisboa. Restaurada para esta exposição, mostra que “o Parque da Liberdade continuava nesse ano em cima da mesa enquanto sonho”, explica o comissário.
Mas, a partir da década de 30, à ideia de parque junta-se a vontade de prolongar a Avenida da Liberdade, e a câmara pede, sucessivamente, estudos a vários arquitectos para resolver o problema. Ao todo são expostas dez propostas que prevêem a reformulação do parque. “Os projectos de Cristino da Silva, que têm uns desenhos espectaculares, propõem um prolongamento da Avenida da Liberdade, rasgando a parte central do jardim. Criam um parque urbano com características completamente diferentes, com uma série de equipamentos à esquerda e à direita, e no topo o Palácio da Cidade para fazer o remate.”
A intenção de prolongar a Avenida da Liberdade para norte, sempre atravessando o parque, manteve-se até aos anos 60. E, mesmo em 1971, como mostra a exposição, é discutida num artigo do Diário Popular, com o presidente da câmara a afirmar que se recusa a hipotecar a cidade para fazer o prolongamento da avenida.
Apesar de rematar o parque a norte com um grande edifício, a própria proposta de Francisco Keil do Amaral, que acabaria por vingar como Parque Eduardo VII (seria já um projecto do Estado Novo, de 1948), “manteve a possibilidade de construir o prolongamento da avenida”. É por isso que António Miranda considera também a proposta de Keil uma reformulação da aventura que começou em 1887, com uma alteração na parte central, que não deixa de ser uma avenida verde.
De facto, a obsessão prolonga-se até 1963, porque é nesse ano que a dupla de arquitectos José Luís Cruz da Silva Amorim e José Lima de Franco propõe uma “quase” auto-estrada, com grandes nós viários, que atravessa o Parque Eduardo VII para distribuir o trânsito. “É o último grande projecto de que temos conhecimento e previa toda uma articulação mais para norte com a zona da Praça de Espanha. É o predomínio por excelência do automóvel com grandes eixos viários”, comenta António Miranda.
O Hilton de Santa Apolónia
Todas estas propostas são “luxuosas” do ponto de vista urbanístico, mas as arquitecturas não correspondem, como se vê na Avenida da Liberdade e nas Avenidas Novas. “A partir do final do século XIX, com a Avenida da Liberdade, podemos falar de desacerto. A monumentalidade urbanística dos eixos, que segue um bocadinho o modelo dos boulevards, como em Paris, Viena ou Barcelona, não é caracterizada, como nessas cidades, por uma arquitectura com um certo standard ligada ao eclectismo do gosto Beaux-Arts”, explica Raquel Henriques da Silva.
Aliás, a historiadora de arte costuma dizer aos seus alunos da Universidade Nova que a maior diferença entre a Lisboa do Marquês de Pombal, que não se reduz à Baixa, porque depois o protótipo foi exportado, a Lisboa de Ressano Garcia, que corresponde a este ciclo das avenidas, e depois a Lisboa de Duarte Pacheco é o facto de as duas últimas não terem norma arquitectónica. “O prédio pombalino existe.” E é preciso chegarmos ao final do século XX para reconhecermos qualidade e desejo de monumentalidade no pombalino. “Só aí se passa a achar que a arquitectura pombalina tem uma métrica, uma erudição e uma dignidade.”
Pontualmente, há arquitectos como Norte Júnior e Ventura Terra que vão trazer esse gosto das Beaux-Arts para Lisboa, “mas são quase um vestígio”, explica António Miranda. Durante o século XIX, bastava uma fachada simétrica para cumprir o mínimo de desenho harmonioso. “O casario corrente, que para nós hoje tem valor patrimonial, naquela altura era apenas casario sem interesse. Hoje achamos espectacular essa simplicidade na arquitectura e gostamos imenso de perceber a herança da engenharia militar subjacente, mas o final do século XIX não gosta muito disso.”
A verdade, sublinha Raquel Henriques da Silva, é que não há então quem encomende obras, nem dinheiro para o fazer. A Câmara de Lisboa fez quase uma festa com a venda de um lote aos Sotto Mayor na Avenida Fontes Pereira de Melo, onde edificaram o seu palácio. “Nunca mais se vendeu um lote daquela escala. Constroem-se novos prédios de standard absolutamente idêntico aos que se constroem na Graça ou em qualquer outro bairro. A verdade é que a elite já estava instalada, porque o terramoto tinha criado a Lapa, o Príncipe Real, a Escola Politécnica ou o Torel, e até aos anos 20 a população não cresceu.”
e arranha-céus ouve-se falar pela primeira vez por volta de 1904 a propósito de um edifício a construir na Avenida 24 de Julho com dez andares. Não passa dos primeiros pisos e é preciso esperar pelos anos 50 para regressar a vontade de construir em altura na zona ribeirinha. É aí que se acumulam várias torres, desde o Hotel Hilton, atribuído a F. Guerra, até aos arranha-céus de Norman Foster, Jean Nouvel ou Siza. No museu, logo à entrada, vai ser possível vê-las numa longa e estreita fotografia, com nove metros de comprimento, que mostra que só para essa frente já foram projectadas 15 torres, algumas do mesmo projecto.
Embora a exposição não classifique os projectos entre bons e maus, como sublinha António Miranda, ainda bem que alguns deles não foram para a frente: “Porque senão nós não teríamos herdado a cidade histórica que temos hoje e de que gostamos.”
No Pavilhão Preto do Museu de Lisboa, a exposição, que ainda estava a começar a ser montada quando a visitámos no início da semana, vai ser acompanhada por um catálogo, a lançar daqui a um mês, e um ciclo de conferências, a primeira das quais está marcada para 1 de Março com programa ainda a definir.