Donald Trump inaugura a era da “América primeiro”
Mais do que orientações políticas concretas, o que se tentava encontrar no primeiro discurso do novo Presidente era a sua interpretação do seu papel e de como pretende desempenhá-lo. Foi radical, polarizador, provocador.
Está desfeito o mistério: o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, será como foi o candidato presidencial Donald Trump, um homem agressivo, radical, polarizador e provocador, que não tem medo de usar palavras carregadas de simbolismo – como patriotismo, força, orgulho e destino – para proclamar que “de hoje em diante vai ser sempre a América primeiro”.
Num dos discursos de tomada de posse com o tom mais autoritários e isolacionista de que há memória, o novo ocupante da Casa Branca enunciou a “nova visão que vai governar o país” e atravessar as relações internacionais, “a partir de agora”, e que é a da “América primeiro” e acima de tudo o resto; a América que “brilha como um exemplo a ser seguido por todos”, que nada teme porque está “protegida por Deus” e cuja grandeza a torna “totalmente imparável”.
Depois de uma campanha eleitoral virulenta, que abriu uma profunda fractura no país, esperavam-se de Donald Trump palavras conciliatórias, que servissem para aproximar, sossegar e inspirar os norte-americanos. Em 2009, um optimista Obama proclamara “o fim das queixas, falsas promessas, recriminações e dogmas desgastados que durante tanto tempo estrangularam a política” para superar as divisões e unir o país. Trump manteve-se fiel ao seu guião de dividir para reinar.
No seu discurso inaugural, o Presidente dos Estados Unidos falou exclusivamente para os seus apoiantes: “os esquecidos” que ninguém ouvia e que foram até Washington em grande número para assistir à sua tomada de posse (e os restantes que seguiram a cerimónia pela televisão”. “Agora toda a gente vos ouve. Este é o vosso dia e esta é a vossa celebração. E este, os Estados Unidos da América, é o vosso país”, declarou, apontando a multidão predominantemente branca, mantida afastada por barreiras policiais de uma outra multidão, notoriamente mais diversa, de manifestantes.
O 45.º Presidente dos EUA fez questão de se anunciar como o primogénito de uma nova era política, onde o poder já não está concentrado nas instituições de Washington mas distribuído e pulverizado pelo país. “A cerimónia de hoje tem um significado muito especial, não porque estamos apenas a transferir o poder de uma Administração para outra, ou de um partido para outro, mas porque estamos a transferir o poder de Washington e a devolvê-lo ao povo”, observou.
Mais do que orientações políticas concretas, o que se tentava descortinar no discurso de Donald Trump era a sua interpretação do papel do Presidente e como pretende desempenhá-lo. Desde a confirmação dos resultados eleitorais de 8 de Novembro que se esperava uma “mudança” em Trump, que deixaria de ser o candidato que instigava a tensão e divisão para se transformar no Presidente de todos os norte-americanos, representante e símbolo maior de uma das democracias mais consolidadas e comandante do Exército mais poderoso do mundo. Trump desmentiu essas expectativas do princípio ao fim do seu discurso – parte do qual foi uma repetição dos slogans populistas e nacionalistas da sua campanha – remetendo sucessivamente para o seu manifesto político, e escusando-se a estender o tradicional ramo de oliveira aos seus adversários políticos e aos milhões de eleitores que não votaram nele.
Aliás, recusou sequer reconhecer a presença na cerimónia da sua rival eleitoral, Hillary Clinton, que recebeu cerca de três milhões de votos mais do que ele próprio (e se apresentou vestida de branco, em homenagem à luta do movimento sufragista que conquistou o direito ao voto para as mulheres norte-americanas). Iludiu ainda as razões que justificaram o boicote de dezenas de membros eleitos do Partido Democrata que recusaram comparecer no Capitólio por causa do racismo do Presidente – e também dos milhares que protestaram pelas ruas da capital, em defesa dos direitos das mulheres ou das minorias de muçulmanos, hispânicos, LGBT, ecologistas, artistas e até jornalistas.
Não foi só a oposição democrata que o Presidente desafiou. Empossado com a mais baixa taxa de aprovação da História, Donald Trump não se esforçou por lançar as bases de uma colaboração mais estreita com os legisladores do Congresso, incluindo a maioria do partido que o elegeu, o republicano. O seu discurso nada teve de conservador: foi revolucionário na denúncia do sistema que “soube proteger-se a si em vez de proteger os cidadãos”, e dos políticos que prosperaram e “recolheram as recompensas do governo enquanto o povo pagou os custos”. “Nunca mais aceitaremos políticos que passam o tempo a queixar-se mas nunca fazem nada. Acabou o tempo da conversa fiada, chegou a hora da acção”, advertiu, prometendo atender “às exigências justas e razoáveis do público honesto e honrado”.
Donald Trump deixou ainda para trás, na escadaria do Capitólio, a habitual cordialidade que une os membros do restrito clube dos antigos presidentes dos Estados Unidos e se manifesta em todos os momentos de solenidade institucional. Perante o seu antecessor Barack Obama, e também George W. Bush, Bill Clinton e Jimmy Carter, pintou um retrato devastador do país que herdou, referindo-se às vítimas de uma “carnificina” americana: a pobreza que aprisiona mães e crianças, o crime e a droga que roubam vidas, as fábricas transformadas em túmulos na paisagem.
“Isso é o passado, a partir de agora só olhamos para o futuro”, sublinhou, anunciando “como um decreto” a sua visão de um país que que será outra vez grandioso. “A América vai voltar a ganhar outra vez, a ganhar como nunca ganhou antes. Vamos ter de volta os nossos postos de trabalho, as nossas fronteiras, a nossa riqueza e os nossos sonhos”, prometeu – insistindo que todas as suas decisões servirão para beneficiar “os trabalhadores americanos e as famílias americanas”.
Quando ainda estava a escrever o rascunho do discurso, Trump confessou que estava a inspirar-se em John Kennedy, mas essa influência acabou por perder-se no texto. O Presidente não perdeu muito tempo a olhar para o resto do mundo, mas prometeu aplicar o mesmo princípio – de que os interesses dos EUA estão à frente de tudo – nas relações internacionais. A sua convicção é de que cabe naturalmente à América um papel de liderança, mas desviando-se da linha de Roosevelt ou Reagan, explicou que só pretende assumir esse exercício para “erradicar completamente o terrorismo islâmico da face da Terra”. De resto, disse que os EUA procurarão “a amizade e boa vontade das nações do mundo". "Sem precisar de impor o nosso modo de vida, que brilhará como um exemplo para os outros seguirem”.