Morrer ou matar por um ideal

Em estreia esta quinta-feira em Coimbra, Sócrates Tem de Morrer é mais um capítulo político no teatro de Mickaël de Oliveira. Desta vez, há um grupo terrorista filosófico em palco.

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Quando o encontramos nesta peça, Sócrates (Albano Jerónimo) já está condenado à morte Bruno Simão

O Sócrates de aqui se fala não é o Sócrates de O Dom Profano. É o outro. Aquele que não deixou livros, que inclusivamente desconfiava deles porque não respondiam de volta e eram objectos fechados, aquele que conhecemos sobretudo porque Platão fez o enorme favor à Humanidade de não deixar que o seu pensamento se perdesse. E, no entanto, foi a pensar num livro que Mickaël de Oliveira escreveu Sócrates Tem de Morrer, peça que o próprio encena e que se estreia esta quinta-feira no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra. O livro chama-se Fédon, foi escrito por Platão, descreve os últimos dias da vida de Sócrates e regista o diálogo em que o mestre discute a imortalidade da alma. Fédon é uma das obsessões de Mickaël de Oliveira.

Sócrates Tem de Morrer mete casamento, festa, alegria, drama e um plano mirabolante para espalhar a verdade pelo mundo sem olhar ao número de mortos. Tudo o que uma obra deve ter. É parte de uma tetralogia que o autor tem vindo a dedicar ao teatro e à política, apoiando-se aqui em Fédon porque é do poder de um livro e da sua interpretação que se quer falar em palco. “É bom que se perceba que há todo um debate sobre a sobrevivência da alma e sobre o Fédon porque isto é também sobre como se radicaliza uma leitura”, diz o dramaturgo ao PÚBLICO. “Radical porque se vai à raiz das coisas e porque é um livro fundador. Mas que tem poesia, metáfora e é ficção. Tal como a Bíblia ou o Corão.” O que Mickaël quer questionar é como se elimina a ficção e a metáfora até se chegar a um manual de instruções para matar.

As ligações com o noticiário de hoje fazem-se em menos tempo do que aquele que Sócrates demora a beber a cicuta, mas o terrorismo que autor/encenador quis passar para um elenco que conta com Albano Jerónimo, Ana Bustorff, Paulo Pinto, Pedro Lacerda e Maria Leite baseia-se antes nos exemplos colhidos nas décadas de 1960 e 70, os alemães Baader-Meinhoff ou as italianas Brigadas Vermelhas, “um período em que a ideologia estava muito presente na sociedade civil e esta decidiu tomar as armas para combater o capitalismo, etc.”. E isto porque quando encontramos Sócrates (Albano Jerónimo), o pensador está já condenado à morte e são os seus discípulos que, levando às últimas consequências as suas palavras, decidem segui-lo na morte.

Este grupo terrorista filosófico imaginado por Mickaël de Oliveira toma a palavra de Sócrates por certa e ambiciona alcançar essa verdade suprema só alcançável quando a alma se libertar do corpo. Daí que o grupo pense, de forma altruísta e a bem do planeta, em alargar esta procura de conhecimento, amparada na crença na reencarnação, a toda a população mundial. “Eles tomam decisões e planeiam matar não por discordarem dos estilos de vida das pessoas ou para as proibirem de fazer algo, mas para lhes dar conhecimento, para que todos participem nessa megalomania pela verdade.” Sócrates, que queria morrer por um ideal, inspira, afinal, que se mate em nome desse ideal.

Sócrates ao nível de Cristo

Há muito que Sócrates fascina Mickaël de Oliveira, apresentado ao mundo do teatro desde que venceu, em 2007, o Prémio Nova Dramaturgia Teatro Maria Matos, três anos depois de ter fundado com o encenador John Romão o Colectivo 84. “Para mim, é uma personagem que está ao nível de um Cristo”, compara. “Se analisarmos as duas vidas, aliás, há muitos paralelismos, quase parece que Cristo (ou quem o escreveu) replicou muitas características da vida de Sócrates. É um tipo sem medo da morte, que acredita num ideal superior, alguém que intervém na cidade. Não é um político – mas a sua função política é muito forte. Fascinam-me o seu cinismo e a sua rebeldia, e o facto de ser sacrificial, alguém que vai até ao fim das suas ideias. Acho este radicalismo muito disruptivo em relação à nossa sociedade, em que a diplomacia mundial não se baseia nas ideias mas no conforto das suas populações.”

Num tempo em que as crenças já são outras, políticas ou filosóficas, e em que se repete que as ideologias morreram, Mickael de Oliveira brinca dizendo que “este espectáculo é para velhos e para obsoletos”. Talvez porque, como constata, “já não se entra numa guerra por uma questão ideológica, valem sempre as questões estritamente económicas”. O pragmatismo diz, com o valor de uma observação, sobrepõe-se às ideias. O texto não pretende assumir qualquer lado da barricada, nem defende causa alguma. “É uma exposição de uma visão das coisas”, não mais do que isso.

Em Sócrates Tem de Morrer, que terá continuidade numa segunda parte a estrear em Guimarães daqui por um ano, com um elenco mais alargado, são as ideias que contam. Por muito que, quando um autor morre e a a sua obra fica à mercê de qualquer interpretação possível, nem sempre as coisas corram pelo melhor.

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