Operações no Mediterrâneo não travam traficantes de refugiados
A União Europeia usa navios de guerra contra redes de tráfico que lançam frágeis barcos de borracha no Mediterrâneo. Mas nesses barcos estão só os desesperados. Os traficantes ficam em terra.
O pequeno barco está a arder. Havia pouco tempo estava cheio destas mesmas pessoas que enchem agora o convés de um navio da Sea Watch, uma organização de salvamento alemã.
Os soldados de um navio de guerra, uma presença difusa e espectral que se avizinha ao longe, acabaram de pegar fogo ao barco onde viajavam os refugiados. Em conjunto, os que resgataram e os que foram resgatados olham para as chamas que devoram, lentamente, a pequena embarcação. A Europa protege as suas fronteiras com navios de guerra destinados a afundar barcos pequenos de madeira ou insufláveis de borracha. Mas será que funciona?
A imagem do barco em chamas choca Nico Jankowski, condutor de lancha na missão de salvamento. Ver o navio de guerra chegar, no fim de mais uma operação de salvamento, só para incendiar o barco entretanto esvaziado de imigrantes “é revoltante”. “Saber que esta é a forma como o dinheiro dos impostos dos cidadãos europeus é gasto é simplesmente inacreditável”, diz ao seu colega de blogue da Sea Watch.
Situações como esta são comuns na costa da Líbia desde 7 de Outubro de 2015, quando começou a fase 2 da operação Sophia da União Europeia (UE). A operação é uma resposta militar da União à vaga de imigrantes e refugiados que vão chegando por uma das poucas brechas que ainda restam nas apertadas fronteiras europeias — o Mediterrâneo central entre a Líbia e Itália. Na terceira fase “pretende-se conseguir eliminar activos (navios, embarcações e indivíduos traficantes e contrabandistas) relacionados, de preferência antes de realizarem qualquer acção clandestina”, explica o site do Estado-Maior General das Forças Armadas. A expressão “de preferência antes” faz toda a diferença.
Mas a justificação do Conselho Europeu para esta acção inédita é outra: responder à “situação de emergência humanitária”. Por isso, os chefes de Estado e de governo da UE frisaram, em Abril de 2015, que a Europa “mobilizará todos os meios à sua disposição para impedir que mais vidas se percam no mar e para combater as causas profundas desta situação”.
As estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados mostraram, no dia 20 de Dezembro, que 179.475 pessoas conseguiram atravessar da Líbia para Itália e sobreviver em 2016, graças a operações de resgate. Este é um novo recorde; em 2015, foram cerca de 150.000 e no ano anterior aproximadamente 170.000. Mas outro recorde foi também atingido: nunca tantas pessoas desapareceram no mar.
Os navios de guerra da operação Sophia estão a patrulhar o mar entre a Itália e a Líbia para acabar com o tráfico. Mas esta rota ficou mais movimentada desde que a passagem da Turquia para as ilhas gregas se tornou num beco sem saída, em virtude do dispendioso acordo assinado entre Bruxelas e Ancara, que garante ao Governo de Erdogan seis mil milhões de euros até 2018, em troca de um controlo rigoroso da saída de refugiados de portos turcos.
O alvo não são os imigrantes, realçou Federica Mogherini, a alta-representante da UE para a Política Externa e de Segurança, aquando do lançamento da operação Sophia. O alvo são aqueles que estão a lucrar e a fazer dinheiro com as vidas e muitas vezes com as mortes destas pessoas. “Os nossos esforços têm como objectivo salvar vidas.”
Este era o estado da operação Sophia em Dezembro de 2016: 358 barcos destruídos, a maior parte insufláveis; 101 suspeitos de tráfico entregues à polícia italiana.
“Estou muito confiante nos resultados alcançados e muito satisfeito com o empenho da Europa nesta operação”, diz o contra-almirante Giuseppe Berutti Bergotto.
É Novembro, e o comandante das forças da operação Sophia recebe-nos no enorme convés do porta-aviões Giuseppe Garibaldi. Hoje, o imponente Garibaldi está tranquilamente ancorado numa Nápoles chuvosa. As cores de Itália penduradas frouxamente num mastro na lateral do navio; uma mais bem posicionada bandeira da UE parece ter a ajuda de uma brisa suave. “Atenção explosões”, lê-se num aviso em letras maiúsculas no corredor. Neste momento o convés está vazio, salvo um helicóptero estacionado.
Este porta-aviões, com o nome do unificador da Itália moderna, não foi feito para ficar num porto. É o orgulho da Marinha italiana, com os seus sofisticados sistemas de vigilância, radar, rádio e comunicações por satélite, concebidos para serem usados em cenários de guerra. Navegou por muitos mares e foi usado em operações militares no Kosovo e no Afeganistão. O porta-aviões também já fez o curto caminho para a Líbia. Em 2011, alguns dos aviões de combate que bombardearam as forças governamentais de Muammar Khadafi partiram desta pista flutuante. Os aviões italianos lançaram um total de 710 bombas direccionadas e mísseis na Líbia.
Líbia: um Estado falhado
Desde então, nos últimos cinco anos, a Líbia é um Estado falhado. Um governo de unidade nacional reconhecido pelas Nações Unidas está em funções desde Dezembro de 2015. Mas o país está dividido em zonas que estão sob o controlo de diferentes milícias. E é palco daquilo a que a eurodeputada portuguesa Ana Gomes, que visitou o país e mantém informação actualizada sobre os actores do conflito, chama com tristeza “uma guerra por procuração” — entre o Egipto e os países do Golfo.
Num Estado falhado, o tráfico humano é um negócio multimilionário, próspero e tranquilo que está profundamente enredado na economia local — muito embora haja indícios fortes de que quem lidera as redes de tráfico sejam cidadãos de países estrangeiros, que se aproveitam do vazio de poder para se estabelecerem.
O porta-aviões Garibaldi é o navio almirante da operação Sophia, que tem como missão contribuir para a destruição desse negócio. A frota conta actualmente com outros sete navios. Sete aviões e helicópteros estão à sua disposição. E Portugal é um dos países que contribuem para a missão. O Conselho Superior de Defesa Nacional emitiu parecer favorável à participação de Portugal. Desde Março de 2016, o submarino Arpão e a sua guarnição estiveram envolvidos em missões de recolha de informações junto às águas territoriais líbias. Entre Abril e Junho também a Força Aérea portuguesa enviou uma aeronave P-3C CUP+ Orion e 29 militares para participar na operação.
Este nível de equipamento “não se enquadra na missão”, e “é provavelmente um desperdício de recursos”, acredita Peter Roberts, um investigador do Instituto de Serviços Reais do Reino Unido. Ele foi um dos peritos que a Câmara dos Lordes Britânica convocou para uma audição sobre a operação Sophia em Março. “Muitos destes navios custam mais de 500 milhões de libras cada. Em alguns casos, os aviões estão especializados em encontrar submarinos nucleares no Atlântico Norte, e estamos a usá-los para procurar pequenos barcos de borracha à saída da costa da Líbia”, afirma Roberts.
O nome “operação Sophia” é uma homenagem. Sophia foi o nome escolhido para uma bebé refugiada que nasceu a bordo de uma fragata alemã no Outono de 2015. “[Quisemos] honrar as vidas das pessoas que salvamos, as vidas das pessoas que queremos proteger e transmitir ao mundo a mensagem de que combater os traficantes e as redes criminosas é uma forma de proteger a vida humana”, disse Frederica Mogherini. “É uma fantástica escolha de nome”, afirma o contra-almirante italiano Berutti Bergotto.
Mas será esta uma operação de salvamento? “Não. Mas como toda a gente no mar, quando é necessário salvar vidas, nós somos os primeiros. Damos o nosso melhor, como todos os outros”, responde o contra-almirante.
Resgate mais caro do mundo
Em meados de Dezembro os militares tinham resgatado mais de 30.200 vidas.
“Isso está tudo certo”, diz Ruben Neugebauer, porta-voz da Sea Watch. “Mas nós salvámos 20.000 com o nosso único navio. Imagine o que poderíamos ter feito com esse dinheiro.”
Um contributo fundamental para esta operação no mar entre a Líbia e Itália vem de um país europeu que não pertence à UE — a Noruega. O navio Siem Pilot, contratado pelas autoridades policiais norueguesas ao preço de 57.000 euros por dia, patrulha uma parte do Mediterrâneo central numa outra operação, a Triton. Esta operação é dirigida pela Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira, a Frontex.
Tal como o porta-aviões Giuseppe Garibaldi e os navios de guerra da operação Sophia, o Siem Pilot não se destina ao salvamento de pessoas. A sua missão é patrulhar as águas internacionais a 70 milhas náuticas da costa da Líbia.
Mas a obrigação de ajudar em situações difíceis é imperativa. Muito do tempo no Siem Pilot é passado a prevenir naufrágios em massa muito perto de terra.
O enorme convés tem estado lotado com emigrantes que a polícia norueguesa, os militares, e os oficiais de ligação italianos salvaram. Quando necessário, pode transportar até mil pessoas. Desde o início, no Verão de 2015 até ao Natal de 2016, o Siem Pilot resgatou 28.598 refugiados.
A experiência deixa marcas profundas em todos os envolvidos. “Isto é um crime”, diz o comandante Pål Erik Teigen, sobre o “negócio” que prospera na Líbia: perseguir as pessoas até à praia a meio da noite, extorquindo-lhes entre 1200 a 1500 euros e empurrando-as para o mar. “Este bote era tão mau que nem dá para acreditar. Não era feito para andar no mar. Encheram-no com 140 pessoas, e a apenas 20 milhas náuticas ficou sem ar e naufragou”, diz sobre uma operação de salvamento em Novembro. Só 29 pessoas sobreviveram.
Agora os traficantes usam quase sempre botes insufláveis. “A operação Sophia obrigou-os a mudar de modelo de negócio”, explicou o tenente-general britânico Wolfgang Wosolsobe, também na audição em Londres. Quando os militares da UE começaram a incendiar os barcos maiores, os traficantes optaram por insufláveis mais baratos e muito mais perigosos, comprados por atacado à China, para prevenir perdas financeiras, afirmou o militar.
A perda de vidas só se tornou maior.
“Não enfraquece o tráfico”
O Siem Pilot também cumpre algumas funções tipicamente policiais. Quando o navio se aproxima de um bote insuflável apinhado, tripulantes com binóculos e câmaras têm a missão de observar da ponte para tentar perceber o que se passa a bordo antes do primeiro contacto. “Procuramos as pessoas que estão a controlar o bote — por exemplo, quem agarra a corda. À medida que nos aproximamos, é comum que o telefone satélite que foi usado para contactar o Centro de Coordenação e Salvamento em Roma seja atirado borda fora. Muitas vezes há alguém que põe o motor em ponto morto. Quando chegamos, alguém põe uma criança na proa”, conta Børre Sandbakk, que trabalhou nos serviços de informações a bordo do Siem Pilot.
“Persons of interest” é o termo, em inglês, para suspeitos, usado na operação Triton. Muitas vezes, os membros da rede não viajam nos botes — sabem o quão arriscada pode ser a viagem. Mas há sempre alguém que leva o telefone e se senta no lugar mais seguro da embarcação, e é essa a “person of interest” que os militares procuram.
“Nós não julgamos. Apenas indicamos à polícia italiana quem deve ser interrogado. O homem do telefone deve ter uma explicação a dar, por exemplo quem lho deu”, adianta Sandbakk. O Siem Pilot já entregou mais de 160 suspeitos às autoridades italianas.
Na operação Sophia foram identificados 101 suspeitos. “São pessoas que as redes de tráfico podem substituir em 15 minutos”, acredita Peter Roberts. “Considerando a desproporção de meios, é um número ridiculamente baixo [o dos suspeitos capturados nas operações militares no Mediterrâneo]”, afirmou Roberts no Parlamento britânico.
O procurador italiano Salvatore Vella tem uma expressão carregada quando nos recebe no seu escritório no tribunal de Agrigento, na Sicília. É especialista em casos de crime organizado, sobretudo da máfia. Nos últimos anos especializou-se também em casos de tráfico de imigrantes, um negócio que a Europol estima ter gerado lucros entre os três e os seis mil milhões de euros em 2015.
A Justiça siciliana conhece bem os esquemas da máfia. Muitos dos criminosos mais procurados da Cosa Nostra são naturais de Agrigento. Mas o tráfico de imigrantes a partir da Líbia consegue ser mais rentável, e seguro do que os negócios da máfia italiana e dos cartéis de droga, explica-nos Vella. Basta empurrar um bote de borracha para o mar e está feito. Os traficantes já receberam o seu dinheiro. Os imigrantes são deixados à mercê do destino.
“A operação Sophia não contribui nada para a luta contra estes criminosos”, critica Vella. “As operações militares não enfraqueceram as redes”, afirma o procurador.
Enquanto olha para os milhões gastos com os navios de guerra, o procurador lamenta não ter dinheiro para contratar intérpretes para poder interrogar as vítimas de tráfico e obter informações. “É absolutamente essencial ter pessoas que possam estabelecer relações de confiança com os imigrantes. Em vez disso, só posso contratar a rapariga que trabalha no café e tem medo de ajudar a polícia”, lamenta Vella.
A pressão migratória irregular tem causas. Uma delas é a falta de resposta dos sistemas legais. Muitos refugiados que optaram por pedidos de asilo viram o tempo passar sem qualquer tipo de resposta das entidades oficiais. Sabemos hoje, porque o próprio Parlamento Europeu pediu um estudo legal sobre o assunto, que 90% dos refugiados que se apresentaram nos hotspots gregos eram legítimos candidatos a asilo na UE, provenientes de zonas de guerra elegíveis para a concessão daquele estatuto. Mas a UE falhou clamorosamente, originando um fluxo descontrolado. A única opção válida para quem fugia da guerra, da tortura, das violações, era alimentar o negócio dos traficantes.
Como o Parlamento inglês apurou, pela boca de vários peritos, nem a arriscada viagem de barco da Líbia para Itália assustava os refugiados, que passaram por situações traumáticas anteriores, nas perigosas rotas a norte da Eritreia, no Sudão, no Sara ou na própria Líbia.
O erro de 2011
Os portugueses, italianos e noruegueses que patrulham o Mediterrâneo em busca das redes de tráfico, nos seus navios de guerra, não são ingénuos. Sabem que a tarefa de eliminar o tráfico não está nas suas mãos.
Mas a UE tem um plano: perseguir os traficantes em solo líbio.
O primeiro passo é dar formação à guarda costeira da Líbia. Em 2016, a UE treinou 78 guardas de Trípoli. “Esta é também uma forma de estreitarmos laços com o Governo líbio”, explica o capitão italiano Antonello de Renzis Sonnino, porta-voz da operação Sophia. Em troca, o capitão espera receber um convite formal de Trípoli para permitir a perseguição por forças da UE dos traficantes nas águas territoriais, e no solo da Líbia.
“Temos embarcações anfíbias que podem ir a terra. Mas precisamos de trabalhar em conjunto com as autoridades líbias, por isso precisamos de um convite formal”, explica Renzis Sonnino.
Esse convite pode não estar para breve. O caos instalou-se após os bombardeamentos da NATO que ajudaram os rebeldes a depor o ditador Muammar Khadafi em 2011. O governo de unidade nacional em Trípoli controla apenas uma fracção do país.
A própria guarda costeira da Líbia já não existe, na prática, acrescenta a eurodeputada portuguesa Ana Gomes. “Muitos barcos foram destruídos.”
Renzis Sonnino confirma. “Muitos dos barcos da guarda costeira foram destruídos em 2011. A prioridade era impedir que a Líbia pudesse ter força militar naval.”
Os parlamentares britânicos fazem um julgamento severo das hipóteses de êxito da operação Sophia: é uma missão impossível. É contraproducente enviar navios de guerra para abordar vítimas do crime que se quer punir, quando os traficantes estão a salvo em terra. Mas para que tudo pudesse fazer o mínimo de sentido seria imprescindível que em Trípoli existisse um governo que fosse reconhecido pelos seus próprios cidadãos.
Para salvar vidas há meios mais eficazes, baratos e convencionais. Como a velha traineira reconfigurada que serve de salva-vidas para a Organização não Governamental (ONG) alemã Sea Watch. “Imagine o que poderíamos ter feito com tanto dinheiro”, dizia-nos Ruben Neugebauer. com Crina Boros, Wojciech Ciesla, Christophe Garach, Maria Maggiore, Nikolas Leontopoulos, Harald Schumann e Elisa Simantke
Exclusivo PÚBLICO/Investigate Europe