Assad vai declarar vitória numa Alepo com neve
Uma menina de cinco anos saiu de Alepo Leste com as duas pernas e um braço partidos, para além de uma ferida aberta na barriga, diz a Save the Children. No resto da Síria, a guerra continua.
Os últimos demoraram muito a sair. Passaram umas 24 horas em autocarros, incluindo uma noite gelada. Há uma fotografia: onze adultos (nove homens e duas mulheres), três senhoras de mais idade, dois miúdos e três meninas de colo. Entre os homens, um é o médico Mahmoud Zaza, outro o jornalista Khalil Hajjar, membro do Centro de Media de Alepo. É o início do adeus. Quinta-feira, com grande probabilidade, haverá uma imagem icónica do regime de Bashar al-Assad.
Os últimos do último enclave da oposição da maior cidade da Síria, dividida desde 2012 entre as forças de Assad e as de vários grupos que se lhe opõem, começaram a sair às 6h de terça-feira. Ao início da madrugada chegavam os primeiros apelos desesperados de quem não tinha comida nem agasalhos e não sabia por que é os autocarros em que se encontravam adultos e crianças não andavam. O regime diz que os rebeldes “fizeram exigências de última hora”.
A meio do dia, final da tarde na Síria, os autocarros começaram a avançar, através dos bairros controlados pelo Governo e por milícias xiitas como o Hezbollah. Aliás, a notícia chegou quase ao mesmo tempo às redes sociais de activistas anti-Assad e à agência de notícias do partido libanês. “Os autocarros estão agora a mover-se do Leste de Alepo. Esperamos que isto continue para que as pessoas sejam retiradas em segurança”, confirmou um responsável da ONU citado pela Reuters. Começava a nevar.
Tal como acordado nas negociações mediadas pela Rússia e pela Turquia, enquanto os últimos milhares deixavam Alepo, mais algumas centenas saiam de Fua e Kefraya, duas vilas xiitas cercadas por grupos armados na província de Idlib, a sudoeste da grande cidade do Norte da Síria.
Membros amputados
“Os nossos parceiros estão a tentar tratar as crianças feridas que fugiram de Alepo mas a situação é dramática. Muitas precisaram de ter membros amputados por não terem recebido cuidados a tempo, demasiadas estão fracas e malnutridas”, informou a organização não-governamental Save the Children num comunicado.
Uma menina de cinco anos tinha as duas pernas e um braço partidos, para além de uma ferida aberta na barriga, lê-se no texto. A ONG descreve ainda que algumas crianças se perderam dos pais no caos à saída dos autocarros, quando muitas pessoas correram para receber comida. Tudo isto se passa no chamado “ponto zero”, onde activistas sírios e monitores enviados da ONU recebem quem sai numa operação coordenada pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha.
No “ponto zero”, o activista Muhammad Yasir foi tentando dar conta da informação que tinha, quando ele próprio passou horas sem conseguir falar com quem deveria vir a caminho. Nos autocarros e à porta destes, médicos, professores e jornalistas tinham os telemóveis quase sempre a ir directamente para as mensagens, cada vez mais, à medida que iam ficando sem bateria.
A evacuação dos bairros de Alepo que desde Novembro enfrentaram intensos bombardeamentos da aviação síria e da Rússia, que apoia Assad, começou na quinta-feira, dia 15. Esteve interrompida durante quase todo o fim-de-semana, quando um grupo ligado à Al-Qaeda incendiou dezenas de autocarros que deveriam transportar as populações de Fua e Kefraya para fora do território controlado pela oposição.
Saíram umas 37 mil pessoas de Alepo, incluindo uns 6000 combatentes. Nas semanas anteriores, pelo seu pé, tinham saído mais de 150 mil, 120 mil delas contabilizadas por Moscovo no espaço de poucos dias. Quem saiu na evacuação organizada escolheu não ficar na cidade – numa zona rural da província de Alepo, que escapa ao regime, a Turquia decidiu abrir um campo com tendas, conhecido como Al-Rashedeen; quem decide fica aqui, quer quer continua para Idlib, a 60 quilómetros, a única grande cidade nas mãos da oposição.
21,500 mortos
Ao início da noite, sobravam 2000 pessoas, entre civis e rebeldes, que ainda não tinham chegado ao “ponto zero”. A seguir, Alepo será toda de novo de Bashar al-Assad. Em Alepo Ocidental, onde vive mais de 1 milhão de pessoas, na terça-feira à noite foram inauguradas as luzes de Natal e houve festejos pelo fim dos combates e das bombas. De acordo com as estimativas do Observatório da Síria para os Direitos Humanos, ONG ligada à oposição, 21,500 civis morreram em Alepo e em redor da cidade durante a última ofensiva.
O fim destes confrontos é uma excelente notícia para o Presidente sírio, não necessariamente para os sírios ou para o seu país. Há indicações que apontam para o fortalecimento dos grupos radicais, incluindo o Daesh, nos últimos tempos em que Alepo Leste resistiu. Quem foge para Idlib sabe que as bombas caem ali todos os dias.
Esta quarta-feira, 14 soldados turcos que combatem ao lado de rebeldes árabes sunitas sírios foram mortos pelos jihadistas em confrontos em Al-Bab, na fronteira junto à Turquia. Já em Raqqa, cidade que o Daesh declarou “capital do Estado Islâmico”, a coligação árabe e curda apoiada pelos Estados Unidos dizia estar a oito quilómetros da maior prisão controlada pelos radicais, perto de uma vila onde se acredita viverem os seus líderes, Tabqa.
Desde que em 2011 sírios em várias cidades saíram à rua em protestos contra o seu ditador já morreram mais de 400 mil pessoas no país. O que a repressão do regime tornou numa guerra civil e os interesses de vários países mais o terrorismo transformaram numa guerra por procuração está longe de chegar ao fim.