Sobre o que vão falar Marcelo e Zeman, símbolo de duas Europas?

O Presidente da República Checa “gosta muito” de Trump, é nacionalista, não quer receber um único refugiado sírio e é visto como um dos mais populistas líderes da União Europeia.

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Há dois anos, milhares de checos acusaram o seu Presidente de tentar voltar a fazer do país um satélite de Moscovo David W Cerny/Reuters

Em comum quase só têm o comércio livre (que defendem) e o cargo (são chefes de Estado da União Europeia). Em tudo o resto, Marcelo Rebelo de Sousa e o checo Milos Zeman pertencem a mundos opostos. E na anunciada “nova guerra fria” representam visões claramente diferentes sobre o futuro da Europa.

O contraste poderá não ser evidente durante a visita de Estado que o Presidente da República checo inicia esta quarta-feira a Portugal.

Milos Zeman ­— um dos raros líderes da União a declarar oficialmente apoio à candidatura de Donald Trump — fará o percurso clássico, da campa de Luís de Camões, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, à Assembleia da República, passando pelo Palácio de Belém. E repetirá os passos dos dois chefes de Estado que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu com a mesma solenidade nestes primeiros nove meses de mandato: Sissi, do Egipto, e o rei Felipe VI de Espanha.

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Mas a diplomacia portuguesa sabe que, tratando-se de Milos Zeman, tudo pode acontecer.

Este é o Presidente que defendeu que os refugiados sírios deviam ser enviados para “lugares vazios” em África ou para as “ilhas gregas desabitadas”, uma “boa forma” de Atenas “pagar a sua dívida externa”. É o Presidente que diz que a Crimeia não pode ser devolvida à Ucrânia e cujas aproximações a Vladimir Putin já motivaram manifestações na rua a pedir que o país não se torne “uma colónia de Moscovo”. Em 2015, foi aliás o único líder ocidental que assistiu em Moscovo às celebrações do fim da II Guerra Mundial.

E Zeman foi um dos primeiros Presidentes do mundo a falar com Trump depois das eleições norte-americanas. No telefonema, o Presidente eleito agradeceu-lhe ter sido o “único Presidente europeu” a apoiá-lo durante a campanha e propôs que o visitasse em Washington. Desde que foi eleito, em 2013, Zeman foi três vezes aos Estados Unidos, mas Barack Obama nunca o convidou para um encontro na Casa Branca. Repetidamente, Zeman diz que gosta das ideias de Trump sobre “refugiados, terrorismo islâmico e o politicamente correcto”.

Tal como Trump, de resto, Zeman gosta de discutir em público os nomes de futuros embaixadores. Disse que Ivana Trump, de origem checa e ex-mulher do novo Presidente, seria uma excelente embaixadora dos EUA em Praga, e que Jindrich Forejt, ex-chefe de protocolo do Castelo de Praga, seria um óptimo embaixador no Vaticano.

Forejt, com quem o Palácio de Belém preparou esta visita de Estado, demitiu-se na semana passada. Oficialmente, a saída foi justificada por razões “pessoais e de saúde”, mas nos bastidores diplomáticos circula um bizarro vídeo que alegadamente o compromete. Sem que seja surpresa para ninguém, a controvérsia vem de trás. No ano passado, depois de um encontro com o Papa Francisco em Roma, foi notícia o facto de o Vaticano não ter gostado de ouvir Zeman propor Forejt para embaixador sem antes testar a ideia. Do mesmo modo, Trump sugeriu no Twitter que Nigel Farage, anti-europeu convicto e ex-líder do UKIP — o partido nacionalista britânico que liderou a campanha do “Brexit” —, fosse nomeado embaixador do Reino Unido em Washington.

Em alguns círculos diplomáticos, Milos Zeman é aliás comparado com Farage. A linguagem populista e desabrida — e por vezes pura e simplesmente mal educada — é a sua imagem de marca. Outra é esticar as suas competências constitucionais e dar a ideia de que é ele quem comanda a política externa do seu país.

Este Verão, quando disse que a República Checa não devia receber nem os 80 refugiados sírios previstos no acordo europeu, correu uma onda de choque em várias capitais da União. Num forte contraste com a posição de Portugal nesta matéria, Zeman disse que a única forma de evitar “ataques bárbaros” era fechar as portas aos refugiados. Mesmo assim, só o alemão Guenther Oettinger, comissário europeu para a economia digital, estalou o verniz. “As quotas para os refugiados foram acordadas por uma larga maioria e são, neste momento, lei europeia”, começou por dizer. E acrescentou: “Um Presidente que difama os legisladores europeus deste modo fragiliza a Europa como um todo.”

Neste aspecto, como sublinha a diplomacia portuguesa, o Presidente checo está mais alinhado com os seus eleitores do que a maioria dos líderes europeus. Mais de 60% dos checos não querem que o país receba um único refugiado. E se há repetidas manifestações na rua contra Zeman, as sondagens mostram a sua popularidade a subir (tem hoje 62% de apoio popular).

“Zeman não é Viktor Orbán”, diz um diplomata que conhece bem a Europa de Leste, referindo-se ao primeiro-ministro húngaro. “So far, so good: se há uma atmosfera de autoritarismo e tentativas do Presidente em testar a Constituição, do ponto de vista da gestão constitucional, não se vislumbra o desregular da democracia.”

Há outra leitura possível. Não sendo Orbán, Zeman consegue mesmo assim fazer lembrar que “Portugal é uma referência dos valores democráticos”, diz Heitor Romana, coordenador da Escola de Estudos Políticos e Estratégicos no ISCSP, da Universidade de Lisboa. Por isso, a visita de “um Presidente com as características de Zeman ajuda a afirmar Portugal como exemplo pedagógico, numa Europa que se debate com os tiques autoritários do Leste e a subida de uma extrema-direita que utiliza os instrumentos da democracia para ganhar poder”. E conclui: “A diferença entre Marcelo e Zeman não é terem estilos diferentes, nem serem tolerantes ou intolerantes. A diferença é que um olha para a Europa como um valor em si mesmo e outro olha para a Europa como um valor instrumental.”

Receber Zeman é também mostrar, diz o professor, “que felizmente não temos uma ‘diplomacia de partisan’: temos uma diplomacia de valores, por oposição a uma diplomacia de interesses”.

No caso, os interesses tangíveis resumem-se em poucas linhas. A República Checa é o nosso 26.º cliente no ranking das exportações de bens e serviços (há 800 empresas portuguesas que exportam para a República Checa), depois de toda a Europa Ocidental e de países distantes, mas grandes, como os EUA, Brasil e China. A República Checa compra-nos sobretudo combustíveis minerais, instrumentos de óptica e precisão, produtos agrícolas, madeiras e cortiça. E a comunidade portuguesa na República Checa é minúscula: 300 estudantes de Medicina e outros tantos engenheiros informáticos. Por termos uma relação simpática mas secundária, na agenda há apenas temas gerais da actualidade. E todos farão por esquecer a última visita de Estado entre os dois países. Em 2010, Cavaco Silva ouviu, em Praga, do então Presidente Vaclav Klaus, um declarado antieuropeu, duas ou três piadas que soaram a humilhação.

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