Quanto vale uma estrela Michelin?
Se tudo correr como foi anunciado, Portugal vai nesta quarta-feira duplicar o seu número de estrelas Michelin. Há quem fale numa “nova era”.
Trabalho, trabalho, trabalho. Mas também dinheiro, muito dinheiro. Não é sem esforço que se consegue uma estrela Michelin. E também não se pode dizer que basta querer muito para a conseguir. Qual o caminho para que um restaurante seja premiado pelo guia mais famoso do mundo? Ninguém sabe exactamente. Mas sabe-se que não é fácil.
O anúncio sobre as novas estrelas para a Península Ibérica será feito nesta quarta-feira ao princípio da noite, em Girona. Mas quando em Outubro o director de relações exteriores do Guia Michelin, Ángel Pardo, informou os jornalistas que Portugal iria duplicar o número de estrelas — passariam de 17 para 34 — fez prever que se estava a abrir um novo capítulo na alta restauração portuguesa.
O chef João Rodrigues aponta para “um novo paradigma”, Leonel Pereira fala numa “nova era”. Se houve este salto gigante é porque certamente começaram a ter peso alguns factores que até aqui estiveram fora das ponderações dos misteriosos inspectores — misteriosos porque não só são anónimos quando se sentam à mesa, como ninguém sabe exactamente o que avaliam.
“A estrela que os chefs ganhavam há dez, 15 anos era muito mais sofrida”, afirma Leonel Pereira, do restaurante São Gabriel, em Almancil (com uma estrela Michelin). Agora, “o guia modernizou-se”. “Continua a ser o melhor guia do mundo, sem dúvida nenhuma”, mas terá aligeirado os critérios para a atribuição em Portugal e Espanha, que eram particularmente duros quando comparados com os usados em outros países. “Em Londres ou Nova Iorque um restaurante com uma estrela tem menos qualidade do que na Península Ibérica.”
O Guia Michelin, criado em França em 1900, não explica o porquê das suas recomendações ou das descidas de classificação. Simplesmente atribui as estrelas: uma significa “um restaurante muito bom na sua categoria”; duas “cozinha excelente, que justifica um desvio”; três, o máximo, “cozinha excepcional, que justifica uma viagem”. Garante que avalia “apenas o que está no prato”, de acordo com cinco critérios: qualidade dos ingredientes; técnica na preparação e combinação de sabores; criatividade; equilíbrio qualidade/preço; consistência dos padrões. Não fala em toalhas nas mesas, em cutelaria, cristais ou ingredientes luxuosos como trufas, caviar, foie gras.
Mas, até agora, “nenhum dos restaurantes premiados em Portugal tem mesas sem toalha”, refere Henrique Sá Pessoa, que muitos apostam que irá receber nesta quarta-feira a sua primeira estrela para o Alma, em Lisboa (onde não há toalhas). Os critérios usados pelos inspectores são um enigma, diz. “É uma linha invisível e ninguém deve viver obcecado com isso. Se esse trabalho for reconhecido pelo Guia, é a cereja no topo do bolo.”
Mas será preciso “continuar sempre a trabalhar para fazer melhor, como em qualquer negócio”. Se o reconhecimento aumenta, as expectativas também. E gerir expectativas é uma coisa que todos os restaurantes têm que fazer, “incluindo os McDonald’s — as batatas não podem estar frias, o hamburger não pode estar seco, a parte difícil é garantir que os standards são iguais e não há oscilações, é isso que dificulta a vida dos cozinheiros na alta cozinha”.
Globalização de sabores
Tem havido acusações de que há um enviesamento que favorece a cozinha francesa (e a França é o país com mais estrelas Michelin). Teresa Vivas, do projecto de promoção da gastronomia portuguesa no estrangeiro, da associação de restauração AHRESP, vai ainda mais longe: “Os inspectores foram sempre injustos em relação à gastronomia portuguesa”, acusa. Uma das explicações pode estar no facto de “as nossas confecções serem muito simples, à base dos cozidos, grelhados, estufados, sem grandes molhos nem grandes dificuldades técnicas”, adianta. “Mas no mundo inteiro há estrelas Michelin ‘simples’; em Portugal é que há uma exigência de luxo, não sabemos porquê.” A avaliação tem sido “muito severa, quase sem liberdade para a alma portuguesa resistir aí no meio”.
O resultado disso é que “fomos obrigados a internacionalizar mais a nossa gastronomia”. Passou-se a usar produtos estrangeiros como vieiras e mini-legumes, desprezando, por exemplo, as nabiças, que são muito utilizadas na cozinha portuguesa — “mas nunca as vi em restaurantes com uma estrela Michelin... A matriz dos nossos sabores ressentiu-se um bocadinho, entrámos numa globalização de sabores”.
A norma são pratos de “formatos asiáticos, franceses e até espanhóis, com confecções moleculares — agora o que está na moda é o gastro-emocional, a comida que provoca emoções”.
Esta internacionalização também “tem o seu lado bom”, que permite aos chefs, que estão agora bem mais preparados do que antes, concorrerem com os seus pares, ressalva. Mas introduz um nível de stress com o qual nem todos conseguem lidar.
Foi doloroso o processo de Miguel Laffan no L’and Vineyards. Em 2011, os proprietários contrataram-no com o “objectivo claro” de trazer uma estrela para o restaurante — e isso “é meio caminho andado” para lá chegar, diz Laffan. “Construiu-se a equipa, a cozinha a sala, foi complexo e envolveu um grande esforço financeiro.” Mas em dois anos conseguiu a distinção. À estrela seguiu-se alguma desorientação. Ia ser pai, queria aproximar-se da família (em Cascais), voltar às raízes, renovar-se. Acabou por se afastar e a equipa sofreu várias mexidas. “As coisas não correram pelo melhor”, admite. Em 2015 perdeu a distinção. O lado positivo é que “abriu os olhos — e o restaurante nunca esteve tão bem” como agora. É provável que este ano a recupere. “Às vezes é preciso dar um passo atrás para focar. Foi o que me aconteceu. Reagi muito melhor à perda do que a ganhar a estrela. Não estava preparado — ninguém me conhecia e de repente era a única estrela do Alentejo. Agora já tenho alguma coisa a ensinar: não desfocar, ter cuidado com o jogo de egos. É fácil viver na primeira pessoa.”
A mecanização e o vício
Há outras pedras no caminho. Num restaurante, “o mais importante é ter consistência”, diz João Rodrigues, chef do Feitoria, no Altis Belém Hotel. “E por isso há que repetir inúmeras vezes todos os molhos, todos os acompanhamentos, o que exige uma regularidade na execução que acaba por funcionar de uma forma quase mecânica. É mais agradável estarmos libertos disso.” A tal “mecanização” exige equipas grandes e bem treinadas, sintonizadas. Gera-se “uma relação amor-ódio”. “Quanto mais fazemos, mais ficamos viciados em fazer, em criar pratos novos, ir à procura de produtos, cronometrar tudo.” Depois, “há momentos em que apetece ‘zerar’, cozinhar para os amigos, descontracção total”.
Mas sem pressão, dificilmente se avança. E isto “não tem a ver com as estrelas Michelin, tem a ver com o processo”. Sempre quis receber uma estrela, confessa, era a exaltação da técnica, do produto, do rigor. “Mas nunca fiz disso uma batalha. Fiz o meu caminho e cheguei lá naturalmente.” Este ano, trará uma “mudança de paradigma” que se traduzirá numa “maior liberdade”. “Há um reaprender do que isto pode significar. Para mim, o objectivo é fazer mais e melhor... O meu foco não está em ganhar a segunda estrela, mas se ganhar tenho que pensar. Vai mexer na sustentabilidade do Feitoria. Há uma expectativa diferente e temos que ir ao seu encontro”. Já quando venceu a primeira disse aos seus cozinheiros: “Tem que haver qualquer coisa mais, não é ficarmos por aqui e deixarmos andar.”
Não há estrelas sem investimento
“Toda a gente diz que não trabalha para as estrelas e muitos dizem que não querem estrelas. Eu não trabalho para as estrelas mas quero”, comenta José Avillez, que no ano passado recebeu a segunda estrela no Belcanto, em Lisboa. “Divirto-me muito mais no caminho que na chegada.” Houve um esforço que foi premiado e que passou por “diminuir a margem de erro brutalmente: na melhoria das cozeduras, nos temperos, no controlo de produto”. “Criámos um sistema em que eu diria que numa noite que corra muito mal, não há nenhum cliente que note que correu mal.”
De qualquer forma, nunca se cozinha para o Guia. “Cozinhar para aquele cliente ou aquele inspector não dá. Tenho que cozinhar para toda a gente como se fosse a pessoa mais importante do mundo.”
Não há estrelas sem investimento financeiro, mas há retorno quando elas chegam. “De zero estrelas para uma, o negócio cresce uns 40 %; e de uma para duas cresce mais 20% — mas acima de tudo ganha um estatuto diferente”, explica. A terceira (que ao que consta ainda não chegará este ano a um restaurante português) teria menos impacto nas contas e mais no “prestígio”. O que fazer a partir daí? Trabalhar mais. “Não sei se alguma vez vamos ganhar a terceira. Mas se ganharmos, temos que tentar a ‘quarta’.” Com Alexandra Prado Coelho