Trump abriu a toca aos guerreiros arianos
A América onde é possível um político rejubilar perante um insulto como Michelle Obama ser um "macaco de saltos altos" estava a emergir há 20 anos. O flirt envergonhado de Trump com os surpremacistas brancos foi a ajuda que faltava.
Há 20 anos, um líder do Ku Klux Klan explicou-me com muita calma que “o crânio dos negros é 22% mais pequeno do que o dos arianos”, afectando a parte “do pensamento abstracto e lógico”, e que, quando nascem, os negros “têm um osso no fim da coluna que parece o lugar de uma cauda”.
— Umas semanas depois desaparece. Não estou a inventar. Pergunte a um médico qualquer, sugeriu Darrell Flinn, então mago imperial dos Cavaleiros da Camélia Branca, um núcleo do KKK do Texas.
Flinn era conhecido como o único líder do Klan que falava aos jornalistas sem capuz e assumindo a sua identidade. Tinha 36 anos, era licenciado em Educação e deixara a meio um mestrado em Ciências Políticas.
Flinn fazia parte de um submundo que estava a reaparecer de forma tímida, mas notória. E se eram poucos, tinham uma estratégia clara: queriam formar quadros e chegar à Casa Branca. Falavam com uma convicção impressionante e diziam que a “revolução do poder branco” estava apenas a começar. Precisavam só de dez ou 20 anos. O universo de Flinn e dos supremacistas brancos americanos juntava ódio, fanatismo, Deus e violência, e incluía os seguidores da Aliança Nacional, da Frente Americana, da WAR (White Aryan Resistance), do Instituto para a Revisão da História, do Partido Nacional Socialista do Povo Branco e, claro, da igreja/partido Nações Arianas.
Nesse longínquo início da era digital, os racistas profissionais como Darrell Flinn tinham armas em casa, tal como no século XIX quando o KKK nasceu, mas já usavam computadores e “poderosos” modems — e tinham 200 sites de propaganda de extrema-direita activos.
Os supremacistas brancos começavam a sair da toca.
A América mainstream olhava para eles como uma franja de loucos. E os loucos, como não têm poder, não são levados a sério.
Mas os supremacistas americanos foram lendo os sinais e talhando caminho. Os ventos sopravam a seu favor. Em 1994, os “angry white men” tinham dado ao Partido Republicano uma impressionante maioria no Congresso e o “speaker” Newt Gingrich (ainda) era visto como o herói que ia tirar o casal Clinton da Casa Branca. Em 1998, quando passei um dia na sede das Nações Arianas, numa quinta isolada nas montanhas do Idaho, o número de grupos supremacistas tinha triplicado desde o início da “revolução Gingrich” e havia uma pequena manifestação de supremacistas por mês, algures numa pequena cidade, daquelas que mal aparecem no mapa.
Sentado à sombra de uma grande árvore no quartel-general do grupo, em Hayden Lake, o “pastor” Neumann Britton, um homem de 72 anos com ar de avô magnânimo, explicou que o plano de conquista do poder passava, em primeiro lugar, por uma “mudança de mentalidades”, um trabalho demorado que acabaria por fazer os americanos “despertar” para a “verdade” do “imperativo” de uma “América de raça pura sem mistura racial”. “Dentro de uns anos, quando o boom económico se esboroar e a América entrar em depressão, os americanos vão descobrir a verdade” e a “simpatia silenciosa” que existia em relação às suas ideias iria fazer-se ouvir, disse o “pastor” da Nações Arianas durante a entrevista, sob a vigilância de um “guerreiro ariano”, vestido de farda azul-escura, boina e botas militares. O FBI via-os como gente perigosa, mas, politicamente, ninguém lhes atribuía peso nem valor.
De forma discreta, mas insistente, estes grupos foram procurando formas de se legitimarem e apagarem o rótulo de marginais. Uma das estratégias foi convidar líderes do Partido Republicano a discursar nas suas reuniões de militantes. Alguns casos tornaram-se públicos.
Em 1992, o senador Trent Lott, do Mississípi, deu uma palestra numa conferência do Conselho de Cidadãos Conservadores, uma reencarnação do Conselho de Cidadãos Brancos que já nos anos 1950 Martin Luther King definiu como “um KKK moderno” e cujo rebaptismo é visto como uma mal disfarçada tentativa de entrar no mainstream da vida política americana. Foi no site deste grupo que, no ano passado, o jovem Dylann Roof, de 21 anos, se inspirou antes de entrar numa igreja de Charleston, na Carolina do Sul, e matar nove pessoas. Quando foi falar ao “conselho”, Lott era líder da maioria republicana no Senado. Do seu discurso, ficou na memória esta frase: “As pessoas nesta sala defendem os princípios correctos e a filosofia correcta”.
Periodicamente, o líder do CCC, Earl Holt III, insiste que o seu grupo não é supremacista branco. Numa das vezes, enviou um protesto a um blogger, que a seguir publicou o email na íntegra. Começa assim: “Sendo, como és, um superficial e diletante apoiante dos pretos, provavelmente achas que os pretos são iguais a nós. Mas, ao contrário de ti e dos teus amigos, o meu QI é superior a 130, o que me permite avaliar com objectividade o ‘Great American Nigro (Africanus criminalis).”
Trent Lott não foi o único a ir falar para as fileiras do CCC. Em 1998, Robert L. Barr Jr., um republicano da Georgia, também discursou num congresso do conselho. E em 1999 foi a vez do então governador do Mississípi, Kirk Fordice. E nem só o CCC atraiu republicanos. Três anos depois, Steve Scalise, da Luisiana e futuro líder do Congresso, foi falar a uma conferência da European-American Unity and Rights Organization (EURO), fundada por David Duke, o célebre ex-líder do KKK.
Nesse ano, 2002, quando Sarah Palin era apenas presidente da Câmara de Wasili, uma pequena cidade de oito mil habitantes no Alasca, já estavam identificados 600 grupos de supremacistas brancos nos EUA (números do Southern Poverty Law Center). Ao mesmo tempo, emergiam também, por todo o país, grupos “patrióticos” e de “milícias”, com uma mensagem antigoverno. Em 2000, havia 194. Hoje, haverá mais de mil.
Foi esta mistura de “angry white men” e de supremacistas que tornou Sarah Palin uma estrela nacional em 2008 e que a seguir, como resultado da chegada de Barack Obama à Casa Branca, ajudou a fundar o Tea Party e o levou ao colo até ao poder. Nas eleições intercalares de 2010, 140 congressistas foram eleitos com apoio do Tea Party.
Há quem acredite que o segredo de Donald Trump foi ter sabido ler a “psicologia americana” da América de hoje. As pessoas querem ser envolvidas, querem ser ouvidas, querem identificar-se com quem está no poder. Mas além de “saber ouvir” os milhões de eleitores brancos das classes mais baixas e sem educação, Trump fez “footsie” com a extrema-direita racista, como resumiu Mark Potok, do Southern Poverty Law Center. “Footsie” vem de foot (pé) e refere-se ao toque no pé que fazemos a outra pessoa, debaixo da mesa, num intencional gesto de discreta aproximação e intimidade.
Quando David Duke, o ex-líder do KKK, apelou ao voto em Trump, o agora Presidente eleito dançou em cima da linha ténue que separa a rejeição da displicência. Numa entrevista na CNN, um jornalista perguntou-lhe quatro vezes se estava pronto a dizer publicamente que não queria o voto de David Duke. Trump respondeu que não sabia nada sobre David Duke. “Não sabe nada sobre o KKK?!”, diz o jornalista, incrédulo. “Estou a falar dos outros grupos”, diz Trump. O jornalista repete que não se refere a “outros grupos”, “apenas a David Duke e ao KKK”. Trump insiste: “Não sei nada sobre o David Duke, acho que nunca o conheci”.
Trump criou um ambiente permissivo que fez com que, debaixo do mesmo telhado, se sentissem bem os supremacistas brancos com a sua retórica tóxica e violenta, os “grupos de ódio” mais ou menos agressivos e uma “classe branca trabalhadora” ligada à indústria. Todos zangados, postos de lado pela crise e pela globalização. Juntos, tornaram-se um grupo de eleitores com peso. Os eleitores que votam a pensar na defesa da “identidade branca”. Com Trump, os grupos racistas do passado ganharam uma nova vida. O Google revelou esta semana que, desde que foi eleito, os americanos estão a “googlar” Ku Klux Klan como nunca. Mais do que “Kim Kardashian” e “college football” juntos.
É por causa desta evolução que, há dias, Pamela Taylor não achou estranho chamar, no seu Facebook, “macaca de saltos altos” a Michelle Obama e que a presidente da câmara da sua cidade, Clay, na Virgínia Ocidental, tenha respondido: “Pam, já ganhei o dia”.