Especialistas consideram que decreto-lei à medida da CGD é inconstitucional
Bacelar Gouveia e Paulo Otero consideram que o diploma de Julho viola o princípio da igualdade em relação aos restantes gestores públicos e cria uma excepção sem a fundamentar. “Criou-se um offshore legal”.
Os constitucionalistas Jorge Bacelar Gouveia e Paulo Otelo consideram que o decreto-lei do Governo que subtraiu os administradores da Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao estatuto do gestor público é inconstitucional, além de ser uma “questão absurda” em termos políticos.
Para Bacelar Gouveia, neste caso houve “manifestamente uma habilidade a propósito de um caso concreto” que acabou por criar, para os administradores da CGD, “um offshore legal”. Paulo Otero subscreve: “Criou-se uma excepção para um caso concreto e isso configura uma inconstitucionalidade material”.
Em causa estão, não apenas as remunerações que o decreto-lei 39/2016 passou a autorizar, como também a dispensa dos deveres inerentes ao estatuto de gestor público, entre os quais a obrigação de entregar no Tribunal Constitucional as declarações de rendimentos no momento da sua entrada em funções.
“Penso que é inconstitucional, desde logo, porque viola o princípio da igualdade, ao criar uma desigualdade de tratamento entre os gestores públicos de bancos e todos os outros”, afirmou o professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa ao PÚBLICO, Bacelar Gouveia. Tanto mais que cria uma excepção “sem que tenha havido nenhuma alteração de substância ou exigência europeia que o justifique”.
Para Paulo Otero, catedrático de Direito Constitucional e Administrativos da Universidade de Lisboa, alinha na argumentação: “Sobre uma aparente generalidade, criou-se uma excepção para o caso concreto e isso viola o princípio da igualdade”. Mas avisa: isso não significa que o decreto-lei não produza efeitos até que seja declarada a inconstitucionalidade.
Para os dois constitucionalistas, esta questão é “politicamente absurda”, mas não é líquida. “Se além dos gestores públicos, estão também obrigados à entrega das declarações de rendimentos todos os administradores de empresas participadas pelo Estado – entendidas como aquelas em que o capital público é minoritário -, então por maioria de razão os administradores da Caixa também devem estar. Deve haver uma interpretação extensiva da lei”, defende Bacelar Gouveia.
Tanto mais que, argumenta ainda, “não faz nenhum sentido recuar manifestamente em questões de transparência”. Mais: em termos jurídicos, um decreto-lei (diploma do Governo) “não pode violar a lei geral que consagra o princípio da transparência”, como é o caso da lei de controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos, que consagra a obrigação de entrega das declarações de rendimentos. E este pode ser mais um argumento a favor da inconstitucionalidade do diploma em causa.
Só aqui Paulo Otero diverge, considerando que a matéria é da competência relativa da Assembleia da República, mas ainda assim nota que, até hoje, as seis alterações à lei de controlo da riqueza foram sempre feitas no Parlamento. “Não deixa de ser significativo politicamente que seja agora alterada pelo Governo e que não tenha sido pedida a apreciação parlamentar do decreto-lei”, frisa.
Bacelar Gouveia espera agora que o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional actue e leve este órgão a pronunciar-se, já que ficou claro que os próprios administradores não o farão. O PÚBLICO questionou o Tribunal Constitucional sobre a questão, mas ainda não obteve resposta.
A polémica segue também no Parlamento, onde o PSD já anunciou as propostas de alteração à lei que pretende apresentar para que estas questões deixem de se colocar.