A reeleição de Corbyn não será o fim da guerra no Labour
Repudiado por mais de dois terços dos deputados, líder trabalhista conta com o apoio das bases para reconquistar liderança. Mas os opositores insistem que a sua viragem à esquerda tornou partido inelegível.
O ano de 2016 trouxe tantos safanões à política britânica que a cautela obriga a que nenhum cenário se descarte à partida, mas ainda assim é quase impossível encontrar quem acredite que o desconhecido Owen Smith seja capaz de vencer Jeremy Corbyn, o veterano activista de esquerda tornado líder improvável do Partido Trabalhista. Só que ninguém acredita também que a guerra pelo partido se encerre quando, neste sábado, forem anunciados os resultados das eleições internas – o que ameaça não só afundar ainda mais o Labour nas intenções de voto como, afirmam os mais pessimistas, provocar uma cisão que o condenaria à irrelevância.
A penúltima capa da Economist – que já se sabe não morre de amores pelos ideários de esquerda – é provocadora ao afirmar que, com a segunda vitória de Corbyn em 12 meses, o Reino Unido arrisca tornar-se “um Estado de partido único”, replicando não o exemplo das ditaduras mas de países como o Japão ou o México, onde “a ausência de uma oposição séria conduziu a uma má governação”. O argumento é o de que, ao virar de novo as costas ao eleitorado do centro, o Labour atira borda fora as hipóteses de voltar ao breve ao poder, deixando os conservadores confortáveis para governar ao seu bel-prazer.
Um cenário dramático para o país na altura em que enfrenta a dantesca tarefa de negociar a saída da União Europeia, avisa a revista, acrescentando que os primeiros sintomas da “doença” já estão a fazer sentir-se: enquanto os trabalhistas estão absortos nas eleições internas, o debate sobre o “Brexit” faz-se entre a ala mais moderada dos conservadores e aqueles que defendem uma saída rápida e a todo o custo da União.
O diagnóstico, dominante entre a imprensa e os analistas, apoia-se no fosso que nas sondagens separa os conservadores, agora capitaneados pela primeira-ministra Theresa May, e o Labour. Enquanto os tories crescem nas intenções de voto, colhendo os frutos da vitória dos eurocépticos no referendo de 23 de Junho e do estado de graça do Governo de May, os trabalhistas registam uma taxas de aprovação historicamente baixas – uma sondagem divulgada 31 de Agosto dava ao partido apenas 27% dos votos, a 14 pontos percentuais dos conservadores. Um estudo de opinião divulgado quinta-feira pelo jornal Guardian revelava também que a primeira-ministra é apontada como mais capaz de responder aos três desafios identificados pelos inquiridos como os mais importantes para o futuro do país, incluindo assegurar o futuro do serviço nacional de saúde (uma bandeira histórica do Labour).
São estes números e estes diagnósticos que tanto os deputados revoltosos – e foram mais de dois terços os que em Julho aprovaram uma moção de rejeição ao líder – como as figuras da ala centrista do partido repetem para tentar convencer os militantes de que Corbyn não é capaz de levar o Labour de novo ao poder. “Se a situação não mudar rápida e radicalmente, não voltarei com certeza a ver um Governo trabalhista na minha vida”, disse à BBC Neil Kinnock, líder trabalhista durante grande parte do reinado de Margaret Thatcher. O partido “nunca tão esteve longe do poder desde 1930”, acrescentou David Miliband, chefe da diplomacia e herdeiro do New Labour desenhado por Tony Blair, num artigo para a New Statesman.
Revolta fracassada
Para o grosso da bancada parlamentar, a gota de água foi a vitória do “Brexit” depois de uma campanha em que Corbyn nunca foi capaz de defender com entusiasmo a permanência do país na UE. Mas a rebelião que levou à demissão de quase todo o “governo sombra” logo após o referendo depressa mostrou não ter pernas para andar.
Desde a reforma aprovada pelo anterior líder, Ed Miliband, o voto de cada deputado vale tanto como o de cada militante ou simpatizante disposto a pagar uma quota para poder escolher o novo líder. E Corbyn, deputado da ala mais à esquerda, que em 32 anos no Parlamento nunca ocupara qualquer cargo na liderança do partido, teve sempre garantido o apoio das bases – venceu as eleições internas de 2015 impulsionado por um inédito movimento de activistas e desde a sua chegada à liderança mais de 300 mil pessoas aderiram ao partido, mais do que duplicando o número de militantes.
Foi este mesmo movimento – agora oficializado sob o nome Momentum – que se voltou a mobilizar contra o que chamaram a “traição” dos deputados, o “golpe das elites políticas” contra a vontade sufragada pelos militantes nas eleições de 2015, as tentativas “da direita radical” para anular o regresso aos princípios fundadores do partido. Os opositores de Corbyn, escreveu a jornalista Ellie Me O’Hagan no New York Times, “dizem que para ganhar eleições o Labour tem de apoiar políticas às quais as suas bases se opõem”. Mas para as bases, “as dúvidas sobre a elegibilidade [do Labour] não passam de uma capa para a tentativa de virar à direita”.
A disputa interna rapidamente se converteu numa guerra de palavras, a que não faltaram ameaças de vir obrigar os deputados revoltosos a sujeitar-se a eleições intercalares para manterem o seu lugar em Westminster. E apesar das críticas abertas ao líder, os parlamentares não foram capazes de encontrar um nome mais sonante do que Owen Smith, um antigo lobista da farmacêutica Pfizer e produtor de rádio da BBC, para desafiar Corbyn (a antiga ministra Angela Eagle foi a primeira a avançar, mas desistiu da candidatura em nome da unidade da bancada).
Uma guerra de atrito
O que resta agora aos 172 deputados se, como tudo indica, o líder a quem acusaram de incompetência for reeleito contra a sua vontade?
“Não tenho qualquer intenção de abandonar um partido que, como nenhum outro, foi fundado para concretizar no Governo os valores progressistas”, disse Chuka Umunna, um dos nomes em ascensão na ala centrista, perante os rumores de uma cisão de parte da bancada parlamentar, podendo mais tarde dar origem a um novo partido. Um cenário que é, porém, pouco provável, já que na memória de todos está a cisão dos 28 deputados que em 1981 deixaram o Labour para formar o Partido Social-Democrata e acabaram por fundir-se com os liberais para evitar o aniquilamento. Sabem também que o sistema eleitoral britânico (círculos uninominais) favorece os grandes partidos, o que poderia ser duplamente penalizador em futuras eleições – não só prejudicando, como o Labour que, sem a ala centrista, seria ainda mais facilmente cilindrado pelos tories.
Depois do Verão quente, Corbyn assegura que vai estender o ramo de oliveira aos adversários já no discurso de vitória deste sábado na convenção do partido, em Liverpool, e há notícias de que convidou vários para integrar o governo sombra. “Ficaria surpreendido se mais de uma dezena aceitasse”, reagiu ao Guardian um dirigente do partido. Os jornais antecipam, ao invés, uma guerra de atrito, referindo que alguns dos nomes apontados como possíveis interessados em suceder a Corbyn querem ser eleitos para dirigir comissões parlamentares, mantendo a sua independência ao mesmo tempo que garantem visibilidade.
“Encaminhamo-nos para o equivalente político da batalha de Somme”, disse à AFP Steven Fielding, professor de Ciência Política da Universidade de Nottingham e especialista em Labour, antecipando que o partido mergulhe “numa batalha sem fim e sem verdadeiro vencedor”. Enquanto isso “os conservadores marcham em direcção às legislativas de 2020, rindo às gargalhadas.”