Não houve mortos no primeiro dia da “última hipótese para salvar a Síria”

Violações da trégua foram muitas mas o acordo aguentou-se. A ajuda urgente ainda não chegou. Mas “pela primeira vez”, Jomaa não ouviu em Alepo “os gritos” das pessoas a quem diariamente retira pedaços de rockets do corpo.

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Crianças brincam esta terça-feira no norte de Alepo Thaer Mohammed/AFP

Nas horas que antecederam a entrada em vigor da trégua acordada entre a Rússia e os Estados Unidos dezenas de pessoas morreram em bombardeamentos e ataques em várias províncias da Síria. Como por milagre ou magia, as armas calaram-se mesmo às 19h de segunda-feira. Nas 24 horas seguintes, “ninguém morreu por disparos”. De Alepo, no Norte, aos arredores de Damasco, a Talbiseh, no centro, sírios dormiam pela primeira vez em muito tempo uma noite tranquila.

“Até agora, este é o cessar-fogo mais bem-sucedido a acontecer no país”, comentava já durante a tarde Rami Abdul Rahman, do Observatório Sírio dos Direitos Humanos, citado pela Al-Jazira.

O Exército russo garantia ao final do dia que o regime de Bashar al-Assad respeitava inteiramente o acordo, enquanto os rebeldes teriam disparado “24 vezes contra bairros residenciais e posições do Governo”. A oposição e a ONG de Rahman, por seu turno, davam conta de uma série de violações do cessar-fogo por parte de Assad, em vilas rurais da província de Alepo ou em Jobar, nos arredores de Damasco, por exemplo. Extraordinariamente, nem os ataques denunciadas por uns nem os cometidos por outros fizeram mortos ou feridos.

O acordo anunciado sábado pelo secretário de Estado americano, John Kerry, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, prevê uma trégua inicial de 48 horas que deve ser prolongada por sete dias. A oposição – que se preparava ainda para fazer um comunicado comum a aceitar o texto negociado pelas duas potências – compromete-se a não atacar tropas do regime; este garante que deixa de bombardear áreas controladas por rebeldes (desde que nestas não haja combatentes da Frente al-Nusra, actual Jabhat Fatah al-Sham, grupo acusado de ligações à Al-Qaeda que anunciou o corte com os terroristas em Julho).

O enfoque dado às primeiras 48 horas tem por objectivo permitir o envio de ajuda aos lugares onde esta é mais urgente, como os bairros da oposição na cidade de Alepo, onde não entra nenhum carregamento da ONU desde o início de Julho, não há combustível e faltam alimentos. Pelo menos 40 camiões atravessaram a fronteira vindos da Turquia ao longo do dia, mas as Nações Unidas continuavam à espera de garantias de segurança.

Garantir a segurança desta ajuda e de quem a distribuiu é, assim, um dos pontos mais urgentes. Os russos anunciaram ter instalado um ponto de observação móvel na estrada do Castelo, eixo vital para alcançar o norte de Alepo, mas já tinha caído a noite e nenhum camião entrara na grande e destruída cidade. Talvez porque Assad continua a exigir ter a última palavra e o seu Governo fez saber que rejeita distribuições que não sejam coordenadas através de Damasco, “em particular as que vêm do regime turco”.

Poder dormir

No bairro de Shaar, da Alepo onde mandam os rebeldes, a AFP encontrou crianças a rir, a andar de baloiço ou a jogar futebol debaixo dos destroços de uma ponte. Muitos residentes aproveitavam o dia de sol, depois de uma rara noite de sono bem dormida, tudo isto no segundo dia da festa muçulmana do Eid al-Adha. “A trégua é boa, mas não chega. Queremos que venha comida”, disse Abu Jamil, que mora noutro bairro cercado pelas forças do regime, Ansari. “Os mercados estão vazios”, insistiu Jamil, de 55 anos.

250 mil pessoas em Alepo, e mais de 100 mil são crianças, sob cerco desde que o Exército sírio conquistou o controlo da estrada que une a Turquia à cidade – e que os russos dizem agora estar a “desmilitarizar”, como previsto no acordo com os americanos.

Em Talbiseh, na província de Homs, no centro do país, um dos principais alvos dos bombardeamentos pré-trégua de segunda-feira, os raides do regime também pararam completamente no arranque do cessar-fogo. “Normalmente, passamos a noite acordados com os aviões, mas graças a Deus pudemos todos dormir”, disse o activista Hassaan Abu Nuh à AFP.

Uma noite de sono sem bombardeamentos, um dia ao sol em liberdade, nada disto é coisa pouca num país há mais de cinco anos em conflito, numa guerra que são muitas e já matou pelo menos 430 mil pessoas e obrigou 4,8 milhões a fugir do país (e mais quase sete milhões a fugir de casa dentro da Síria). Na sua primeira intervenção com o cessar-fogo já em vigor, John Kerry disse em Washington que ainda era “demasiado cedo para tirar conclusões”.

Que isto seja sério

Segundo o que foi negociado com Moscovo, se a trégua se aguentar uma semana inteira, americanos e russos vão em seguida estabelecer um centro de comando conjunto para coordenarem ataques contra os radicais do Estado Islâmico e da ex-Frente al-Nusra, no que seria uma colaboração inédita. Não sobram muitas oportunidades à Síria e Kerry, que só terá mais uns meses no Departamento de Estado, sabe-o bem: “Apelo a todas as partes para apoiarem o cessar-fogo porque pode ser a última hipótese para salvar uma Síria unida”.

Para além de alimentos, faltam remédios e equipamentos médicos em muitas zonas do país. Os ataques do regime, e muitas vezes da aviação russa, contra a oposição têm visado dezenas de hospitais e centros de saúde nos últimos meses. Em Douma, na província de Damasco, sob cerco desde 2013, os médicos desesperam por “medicamentos e outros materiais essenciais” como os “necessários para as sessões de diálise”, dizem Yasser al-Shami e Abu Hamza.

De regresso a Alepo, Alaa Jomaa teve um dia diferente do habitual desde que abandonou os estudos de Economia para se tornar enfermeiro. “Espero que isto seja sério. Espero não ouvir mais os gritos dos feridos no hospital”, afirma, citado no Ahram Online. “Parte-me o coração ouvir os gritos sempre que retiramos fragmentos de rockets dos corpos das pessoas. Hoje, pela primeira vez, não ouvi esses gritos.”

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