Nas prisões sírias, a humanidade está num nível ainda mais abaixo
Relatório denuncia tortura “em larga escala” cometida pelas forças de segurança. Amnistia Internacional estima que tenham morrido 18 mil pessoas nas prisões desde 2011.
“Costumávamos dizer por aqui que não havia justiça na Síria, mas nunca imaginei que a humanidade pudesse chegar a um nível tão baixo.” O comentário é de Samer, um advogado sírio que foi preso em 2012 e recorda a sua passagem por uma das prisões do país.
Em tempos de paz, as prisões sírias eram já locais de violência, onde imperava uma “cultura de impunidade”, de acordo com a Amnistia Internacional. Mas a guerra civil que se arrasta desde 2011 tornou a situação “catastrófica, com a tortura a ser cometida em larga escala”. Morreram quase 18 mil pessoas nas prisões sírias desde o início do conflito, segundo estimativas apresentadas no relatório da Amnistia Internacional divulgado esta quinta-feira.
A investigação da organização de defesa dos direitos humanos foi baseada em entrevistas com 65 “sobreviventes”, que contam as suas histórias. O governo do Presidente Bashar al-Assad nega as denúncias de práticas generalizadas de tortura por parte dos guardas prisionais. Entre 2011 e 2015 morreram 17.723 pessoas, de acordo com estimativas da Human Rights Data Analysis Group, uma organização especializada em investigações quantitativas para aferir violações de direitos humanos.
Os autores do relatório descrevem um “ciclo sem fim de agressões”. Começam ainda na fase de interrogatórios, onde a violência é o método para se obterem confissões forçadas, continuam durante o transporte e na chegada às prisões, nas revistas corporais e fazem parte da rotina dos detidos, sempre que os guardas assim o entenderem.
“A primeira coisa que a tortura faz é tirar-te a dignidade… Destrói o humano”, conta Omar A., um professor de arábe detido em 2011 depois de ter participado em manifestações pacíficas contra o governo de Assad.
Uma das práticas mais comuns são as chamadas “festas de boas-vindas”, que consistem em sessões de espancamento dos detidos que chegam pela primeira vez às prisões pelos guardas prisionais. “Basicamente, assim que se sai do veículo onde é feito o transporte e os pés tocam no chão, a ‘festa de boas-vindas’ começa”, conta Samer, um advogado que foi preso em 2012 quando tentava levar ajuda humanitária para uma zona controlada por grupos rebeldes.
“Eles usavam cordas de metal e plástico, até cabos eléctricos. Batiam em todo o lado, até na cabeça”, recorda. Os presos ficam nus e são obrigados a andar pelos edifícios da prisão. Há relatos de detidos que ficaram três dias num corredor enquanto vários grupos de guardas faziam turnos para os agredir.
“Nunca vi ninguém morrer”, diz Samer. “Mas vi o sangue, parecia um rio…”
A revista de segurança significava várias vezes para as mulheres abusos e até violações por parte dos guardas. Uma das entrevistadas, que se apresenta como “Maha”, diz que esteve num grupo de detidas que foram tocadas pelos agentes prisionais enquanto se masturbavam. Mais tarde, foi levada para um “gabinete de revista” onde foi obrigada a despir-se.
“Maha” suplicou ao guarda que não a violasse. “Ele disse-me: ‘Não fales em Deus! Tu gostas de ter sexo com o ESL [acrónimo do Exército Sírio Livre, um dos grupos rebeldes que combate o Exército sírio]. Não faças de conta que és inocente!’. Ele obrigou-me a ficar totalmente nua e começou a tocar-me. Ele pôs os dedos dentro de mim.”
Um dos locais mais infames é a prisão militar de Saydnaya, onde a liberdade de actuação dos guardas prisionais, pertencentes ao Exército, é ainda superior à que é gozada pelos agentes nas prisões regulares. Normalmente, os primeiros tempos são passados em pequenas celas subterrâneas que apesar de se destinarem a confinamento solitário abrigam grupos de detidos. As condições são tão precárias, e a violência exercida pelos guardas tão intensa, que todas as manhãs um dos detidos estava encarregado de dizer quantos cadáveres havia na cela desde a noite anterior.
Os abusos cometidos pelas autoridades sírias sobre suspeitos e detidos não são um produto exclusivo da guerra civil que vai já no quinto ano. Durante a ditadura de Hafez al-Assad, pai do actual presidente, nos anos 1980 e 1990, a prática de tortura era “generalizada”, diz o relatório. “As violações eram facilitadas pelo estado de emergência em vigor entre Março de 1963 e Abril de 2011” e o desenrolar da guerra civil apenas veio piorar o quadro.
Praticamente qualquer pessoa que o regime encare como um opositor pode ser sujeito a detenção e prisão. “Justificações para deter sob suspeita de oposição ao governo variam e podem incluir activismo pacífico, tal como ser defensor dos direitos humanos, jornalista ou outro tipo de funcionário dos media, fornecer apoio humanitário ou médico a civis em necessidade ou estar envolvido na organização e participar em manifestações pró-reformistas”, escreve a Amnistia.