Os “anjos” do RG3 voltaram a salvar muitos madeirenses
Regimento de Guarnição de 3 do Funchal voltou a ser o principal porto de abrigo para os madeirenses que perderam tudo e que tiveram de fugir das chamas.
Maria tem os olhos inchados e alagados de lágrimas. “Há três dias que não consigo parar de chorar. É uma dor que não me larga o peito. Perdi tudo, tudo, só salvei a carteira com os documentos que trago nas mãos”, conta Maria José Rodrigues, uma das muitas vítimas dos incêndios que nos últimos dias fustigaram a ilha da Madeira.
Maria, 51 anos, estava em casa quando, na madrugada de terça-feira, as chamas se colaram às paredes do edifício térreo, na zona da Penha de França, a meio da encosta que desce até ao centro do Funchal.
Já passava das três da madrugada quando ela, o marido, a sogra e os três filhos adolescentes fugiram das chamas “que queimavam tudo à frente”. “Um inferno. Chamas do tamanho das montanhas que pareciam gritar, enquanto queimavam tudo. Perdi tudo. Tudo”, repete com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
“O único conforto que tive foi destes militares”, conta. Os militares pertencem ao Regimento de Guarnição 3 (RG3), o porto de abrigo dos madeirenses quando as tragédias lhes batem à porta. Foi o refúgio de milhares de pessoas nas enchentes de Fevereiro de 2010 e dos grandes incêndios de 2013. Voltou a sê-lo agora, quando as chamas voltaram a queimar cerca de 500 hectares da ilha.
Ali foram assistidas cerca de mil pessoas. Mais de 600 estivaram ali alojados nos últimos dias. Ao fim da tarde desta quinta-feira ali estavam abrigadas cerca de 200 pessoas, perto de 80 acamadas.
Homens, mulheres e crianças distribuem-se por diversas camaratas, por uma garagem que antes guardava as viaturas militares e que agora alberga dezenas de camas e seis tendas de campanha que também recebem os bombeiros que chegaram de Lisboa em socorro da Madeira. O ginásio foi transformado em enfermaria, a messe serve ao longo do dia centenas de refeições e a parada militar está transformada numa espécie de recreio de crianças.
“Estes homens foram a nossa salvação. Sem eles não tínhamos nada. São os nossos anjos da guarda”, diz Manuel Geraldo, 51 anos, companheiro de Maria José.
Cláudia Gouveia e Clementino do Nunes também fugiram do fogo na madrugada de terça-feira. O fogo lavrava perto da sua casa na zona de São Roque, quase no pico da serra. O fumo era muito e a filha de dois anos não parava de tossir. “Foi para salvar a menina que fugimos. O fumo era tanto que não se via um palmo à frente do nariz. As faúlhas queimavam-nos a roupa”, conta Clementino. Primeiro procuraram abrigo numa instituição de solidariedade social e, mais tarde, desceram para o RG3. Na quarta-feira tiveram boas notícias, com os vizinhos a revelar-lhes que a casa deles tinha sido poupada.
“Não voltámos logo para casa, porque temos medo que o fogo volte a pegar e aqui a menina sofre menos. Lá em cima o fumo ainda é muito”, diz Cláudia.
Cláudia diz que o maior medo é que a casa, poupada às chamas, seja agora roubada. “Vários vizinhos já nos contaram que foram assaltadas casas, mas não voltaremos para cima, enquanto a segurança não estiver garantida”, acrescenta.
Também eles elogiam a forma como foram recebidos pelos militares do RG3 e os muitos voluntários que ali prestam assistência. Dezenas de homens e mulheres que trabalham a tempo inteiro e, nas folgas do trabalho, ali estão desde a primeira hora para prestar todo o tipo de assistência aos refugiados dos incêndios. “Têm sido incansáveis” afirma Clementino.
Silvia Conceição, 50 anos, é uma dessas voluntárias. Pelas camaratas cruza-se com médicos, enfermeiros, pessoas de diversas instituições de solidariedade. Diz não ter nenhuma especialização. Está ali para o que lhe pedirem e para, acima de tudo, “dar carinho”. “Um abraço, um beijo, um miminho ajuda a curar as feridas que não se vêem. Aquelas que estão no fundo da alma e que, às vezes, são as que magoam mais”, diz largando um sorriso carinhoso. “Ajudo sempre que é preciso, porque eu sei o que é fugir a uma desgraça. Eu sei, eu fugi da guerra de Angola”, sublinha.
Os militares não param um momento. Brincam com as crianças, atendem os mais debilitados, fazem transporte para os hospitais e para os que vão regressando a casa e distribuem comida ao longo de todo o dia aos homens e mulheres a quem dão abrigo.
“Sofremos muito com a dor destas pessoas. Algumas perderam tudo. Mas é com muito gosto que as ajudamos. Garantir o bem-estar das populações também é a missão dos militares. E aqui essa missão é levada muito a sério”, disse ao PÚBLICO um oficial que pediu o anonimato. “A única pessoa que dá a cara pelo RG3 é o RG3. Não há outra cara", justifica.
Os militares do quartel estão bem treinados para cumprir esta missão. Nas últimas tragédias madeirenses eles são o primeiro e principal porto de abrigo.
Na madrugada de segunda-feira, quando as primeiras colunas de fumo se começaram a levantar no cimo da encosta, o coronel Pereira Nunes, que comanda a unidade, chamou os oficiais e deu-lhes uma ordem: “Preparem-se, pode vir aí uma nova tragédia.”
E veio. Quando os deslocados começaram a chegar em catadupa, na madrugada de segunda-feira, já havia um registo de pessoas, uma camarata com camas articuladas e uma enfermeira montada. Só que as pessoas eram tantas que teve de ser feito um pedido, ao comando de Lisboa, de tendas de campanha e mais camas articuladas.
Os militares não reclamam só para si os louros da operação de ajuda. Destacam o “trabalho extraordinário e fundamental dos voluntários” e, acima de tudo, dos madeirenses que desde a primeira hora não param de transportar para o RG3 todo o tipo de bens.
Como o PÚBLICO testemunhou ao início e ao fim da tarde desta quinta-feira são milhares de madeirenses que não param de chegar ao quartel com todo o tipo de bens. Peças de vestuário, lençóis, cobertores, todo o tipo de alimentação, garrafas de água e sumos sem conta. Tudo que chega é registado para depois ser distribuído pelos refugiados no RG3 e em outras instituições. Os produtos são tantos que tiveram de ser montadas duas enormes tendas de campanha para receber os bens.
“Os madeirenses, como todos os portugueses, nunca ficam em casa quando os seus precisam de ajuda. Só temos uma palavra para todos: obrigado”, diz um oficial.
Ao fim da tarde desta quinta-feira, já depois de o primeiro-ministro, António Costa, ter visitado o RG3, homens e mulheres passeiam pela parada. Muitos estão parados a olhar para a encosta ainda coberta de fumo e, aqui e ali, pintada pelo preto que o fogo deixou. Muitos não pensam voltar para lá tão cedo. O terror das últimas noites ainda está muito vivo na memória. E os que tudo perderam dizem apenas esperar que não se esqueçam deles. A ajuda dos militares e dos voluntários do RG3 é tudo o que têm.