Para Himmler, planear um genocídio e passar a noite a olhar para as estrelas não era incompatível
Os diários recém-descobertos do homem de confiança de Hitler mostram como no seu dia-a-dia as actividades mais triviais conviviam com o homicídio em massa, mesmo quando a Alemanha já não acreditava na vitória.
Heinrich Himmler não era apenas um nazi com um posto elevado na hierarquia. Era um dos oficiais mais próximos de Hitler e o homem a quem o Führer confiou o plano que levaria ao extermínio de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial. É sobretudo por isso que a descoberta de três dos diários deste oficial alemão considerado um dos grandes arquitectos da chamada Solução Final não podia deixar de ser notícia.
Os diários de Himmler, na realidade calendários de serviço relativos a 1938 e aos anos cruciais de 1943 e 1944, foram identificados em Março num arquivo russo, o do Ministério da Defesa em Podolsk, perto de Moscovo, onde terão sido depositados pelo Exército Vermelho no fim da guerra, ficando “esquecidos” durante 70 anos. Tinham o carimbo “confidencial” e foi preciso que o segredo fosse levantado para que se tornassem acessíveis.
O jornal alemão Bild publica agora alguns excertos retirados das mais de mil páginas que traduzem, nalguns casos hora a hora, o quotidiano do líder da SS, a força militar mais temível ao serviço dos nazis, encarregue da protecção do próprio Hitler.
Da sua leitura, garante o diário britânico The Times, saltam à vista as reuniões com o Führer – mais frequentes à medida que o conflito se aproxima do fim –, o controlo matinal que fazia dos avanços do extermínio, com chamadas telefónicas a operacionais-chave espalhados pela Europa, e encontros com alguns dos seus homens de confiança. Acreditam os historiadores que estiveram os últimos meses a analisar estes documentos para atestar a sua veracidade que até as visitas que fazia à sua amante, Hedwig Potthast, eram registadas, embora o seu nome nunca apareça, sendo substituído pela expressão “em trânsito” ou pela palavra “inspecção”.
Entre as conversas com a mulher e a filha Gudrun, a quem carinhosamente trata por Puppi (bonequinha, em alemão), aparecem referenciadas ordens de execução, encomendas de cães de guarda para Auschwitz ou idas a campos de concentração e guetos onde milhares de judeus eram chacinados. Nestas páginas, que podem não ter sido todas escritas pelo punho de Himmler (os seus assistentes faziam-no certamente, dizem os académicos), uma massagem matinal parece tão natural como assistir ao gaseamento de dezenas de crianças e mulheres no campo de extermínio de Sobibor.
Sublinham os investigadores ouvidos pelo Bild que os diários mostram como Himmler foi planeando crua e cuidadosamente o Holocausto, ao mesmo tempo que se ocupava das mais triviais actividades, como jogar às cartas, ver um filme ou passar a noite a olhar para as estrelas. Incompatível com homicídios à escala industrial? Não na vida deste oficial.
A autenticidade dos documentos foi confirmada por membros do Instituto Histórico Alemão de Moscovo, que compararam estes três diários com outros que eram já conhecidos. Segundo o seu director, Nikolaus Katzer, os volumes permitem aos académicos perceber melhor os bastidores da fase final da guerra. “[Estes documentos] fornecem informação sobre a maneira como o papel de Himmler se vai alterando, sobre a elite da SS e dos comandos alemães em geral”, disse Katzer, citado pelo Times.
Algumas das entradas, lê-se no diário espanhol ABC, dizem respeito a dias tão marcantes como 20 de Julho de 1944, data da Operação Valquíria, uma tentativa falhada contra a vida de Hitler. Através delas se percebe que Himmler se juntou imediatamente ao ditador, inteirando-se de todos os pormenores do ataque e desencadeando de imediato uma investigação. Pelo meio, e sem esquecer que neste mesmo dia a sua amante e antiga secretária dava à luz o segundo filho de ambos, o líder da SS teve ainda tempo de ir buscar Mussolini à estação.
Outras notas dão conta de momentos que seriam banais, não fosse o cenário – e o tempo – em que ocorreram: “Comi qualquer coisa no café do casino das SS”, escreve Himmler, então de passagem pelo campo de Buchenwald.
“Para mim, o mais interessante é a combinação do pai dedicado com o assassino de sangue frio”, disse ao Times o jornalista que ajudou a encontrar os diários que o Bild está agora a publicar. Damian Imoehl parece não deixar de se surpreender com a forma como Himmler se preocupa com a filha, como cuida dos amigos. “E depois há o homem do horror.” O que começa o dia com um telefonema à mulher, Margarete, durante o pequeno-almoço, e que depois decide mandar matar dez homens, antes de sair para visitar mais um campo.
“Himmler é um monstro de contradições”, resumiu à revista norte-americana Newsweek Matthias Uhl, um académico que tem vindo a dedicar-se ao estudo do seu percurso. “Por um lado é o homem implacável que ditava sentenças de morte e planeou o holocausto. Por outro, para a elite da SS, a família e os amigos, era um cuidador meticuloso.”
Um cuidador que orquestrou boa parte da Solução Final mas que não podia ver sangue sem ficar mal-disposto. De acordo com o tablóide Daily Mail – a imprensa britânica está a fazer grande eco da descoberta –, uma das entradas dos diários fala de um desses momentos em que Himmler esteve quase a desmaiar: uma execução em massa de judeus em que pedaços do cérebro de um dos homens foram parar ao seu casaco.
Apanhado pelas tropas britânicas, Heinrich Himmler suicidou-se em Maio de 1945, engolindo uma cápsula de cianeto. Tinha 44 anos, a sua filha Puppi 14. Hoje chama-se Gudrun Burwitz, vive nos arredores de Munique e dirige uma associação que presta ajuda a antigos nazis. Lembra o jornal espanhol El Mundo que, para esta mulher de 86 anos a quem muitos ainda se referem como a “princesa do nazismo”, Himmler nunca foi um monstro.
Notícia corrigida às 15h10 de 5 de Agosto: Himmler não era apenas o líder da Waffen-SS, mas de toda a SS.