Para os turcos, “o que se passa aqui não importa, dizem ‘os curdos merecem’”
O Sudeste está habituado à violência. Mas até para quem nasceu aqui o último ano foi de “armagedão”. O estado de emergência na Turquia, declarado após o golpe, assusta e causa preocupação internacional. Por aqui, é o normal, ninguém quer saber.
No Sudeste da Turquia, terra curda, não se festeja o golpe fracassado em Ancara a 15 de Julho. Festejar o quê? E para quê? Ainda pode dar azar. Antes viver como se pode e aproveitar cada momento de acalmia. Por aqui, toda a gente sabe o que é viver em estado de emergência, com direito a recolher obrigatório e tudo. Toda a gente sabe que é possível sair à rua para participar numa manifestação e não voltar, ou ficar sem casa, de repente.
“Não acredito que os turcos vão perceber como é a vida aqui por haver um estado de emergência nacional”, diz Baris Yavuz, no seu escritório perto da câmara municipal de Diyarbakir. O estado de emergência foi declarado a 20 de Julho. “Se não perceberam há três anos, com os protestos de Gezi [parque junto à Praça Taksim, de Istambul, onde uma manifestação para impedir a sua demolição foi reprimida, desencadeando uma vaga de protestos nacional], por que é que haviam de querer saber agora?”, insiste o responsável da Fundação dos Direitos Humanos da Turquia.
Há muitas diferenças entre viver sob estado de emergência aqui – já em estado de emergência, desta vez, há um ano – ou no resto da Turquia. Para começar, no Sudeste ninguém se digna sequer a anunciar tal coisa.
Alguns, como Murad Akincilar, coordenador do Instituto para os Estudos Políticos e Sociais da cidade que os curdos consideram a sua capital turca, vêem alguma justiça poética nos acontecimentos das últimas semanas. “Os militares que nos atacavam agora estão presos…. É difícil não pensar nisso como uma pequena vingança”, afirma. “E os curdos fartaram-se de avisar que o movimento de Fethullah Gülen [o imã exilado nos Estados Unidos acusado de promover o golpe] estava infiltrado nas Forças Armadas”, acrescenta.
As ruas de Diyarbakir estão particularmente tranquilas. Mais a mais, depois do Inverno e da Primavera de violência que por aqui se viveu. Agora, nem se vê um só soldado. Muita polícia, sim, polícia por todo o lado. A calma não apaga que se vive em guerra.
No domingo, essa guerra teve pelo menos incidentes em duas províncias, Hakkari e Ordu, com quatro soldados mortos em confrontos com combatentes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Na véspera, 35 “militantes do PKK” foram mortos pelo Exército, também em Hakkari, em resposta à tentativa de atacar uma base. Oficialmente, um soldado morto na terça-feira foi a última vítima em Diyarbakir.
Morrer de balas
A guerra no Sudeste mata muito – desde que o diálogo entre o PKK e o Governo turco foi interrompido, há um ano, enterrando um cessar-fogo de dois anos, morreram pelo menos 338 civis, incluindo 82 crianças (sem contar com as dezenas de mortos em atentados do PKK).
“Nunca tinham sido mortas tantas pessoas num tão curto período de tempo”, sublinha Yavuz. “Houve um bairro inteiro de Diyarbakir, Sur, onde não pudemos entrar durante semanas. Não podíamos ajudar quem precisava. Depois, o bairro desapareceu.”
Desta vez, ao contrário do que aconteceu em períodos igualmente violentos, o conflito deixou de ser iminentemente rural e o campo de batalha transferiu-se para as zonas urbanas. Sur, como várias partes de outras cidades, foi simplesmente demolido. Transformado em pó. Entre 350 e 950 mil pessoas fugiram das suas casas; destas, dezenas de milhares viram as suas casas desaparecer e não sabem quando terão outras. O Instituto para os Estudos Políticos e Sociais estima que a escalada do conflito que se vive desde Agosto de 2015 já afectou 1,6 milhões.
“Eles pensam que podem dobrar esta gente. Derrotá-los. Mas aqui as famílias são muito grandes. Se atingiram mais de 1,6 milhões de pessoas, imagina quantos milhões de novos combatentes e de gente pronta a resistir a Ancara criaram”, diz Akincilar.
“Eles merecem”
Desta vez, ao contrário do que aconteceu em alturas marcadas por hostilidades permanentes, o conflito do lado do Estado começou por ser conduzido pela polícia, mas as operações passaram rapidamente para as mãos do Exército. “Eles até foram buscar militares à reserva, gente que combateu nos anos 1990”, conta Akincilar. Os anos de 1990 foram o pico da guerra civil entre os curdos e o Estado turco, uma guerra que já fez mais de 40 mil mortos. “O PKK disse que nunca poderia antecipar um conflito tão destruidor.”
Yavuz só consegue descrever o que aqui se viveu no último ano como “armagedão”. “Os curdos foram sempre os outros. Para os turcos, o que se passa aqui não importa. Tratam-nos sempre como ‘eles’, ou seja, nós, os curdos, e dizem: ‘Eles, os curdos, merecem.’”
Diyarbakir já não pode muito mais. Durante anos, recebeu quem fugia dos combates em zonas mais rurais. Agora, a rebentar pelas costuras, viu os combates chegarem ao centro da própria cidade.
“Há uma perda de esperança generalizada em relação à paz. E uma grande desilusão. Não são só os mortos, é a destruição colectiva da vida social. Em Idil [outra zona de uma província vizinha de Diyarbakir], a destruição foi total. É uma terra de ninguém, desapareceram quilómetros de ruas”, descreve Akincilar. O académico conta que um colega médico fez várias autópsias e se deparou com “muitos corpos calcinados depois de mortos, muitos deles de jovens raparigas”.
Desta vez, afirma o investigador, as manifestações contra a violência do Estado juntaram tanto raparigas como homens jovens. “Nunca tinha visto nada assim, raparigas de 13, 14 anos em barricadas… E a retórica política da guerra é muito masculina, machista até”, diz.
Graffiti e violação
Para explicar por que é que a destruição não acontece só com a morte e com as demolições, Akincilar conta que nos bairros deitados abaixo, nas casas abatidas pelas escavadoras, há frases grafitadas como recordação.
“Não é fácil de traduzir. Há uma palavra em turco que quer dizer casa, mas também lar ou agregado familiar, e ainda confidência, privacidade”, explica. “Eles escreveram frases como ‘Deus salvou a raça dos turcos’, ou ‘Soldados do Exército de Alá são turcos’, mas também ‘Ei, raparigas, estamos em casa, privacidade’, a tal palavra, ‘Penetrámos a vossa… privacidade’. É uma espécie de violação, a mensagem é essa.”
Ao contrário de Yavuz, Akincilar não é curdo nem nasceu em Diyarbakir. Nasceu em Istambul e aceitou o convite para se mudar para aqui e dirigir este instituto em 2009, pouco depois de sair da prisão. Economista de formação, começou por trabalhar na academia, em Istambul. Depois passou por Genebra e dedicou anos ao movimento sindical e a diferentes ONG.
De regresso a Istambul, envolveu-se numa iniciativa para fundar um partido com turcos e curdos que promovesse a democracia participativa, os direitos LGBT, a emancipação feminina, uma economia preocupada com a natureza. Dias depois de falar num colóquio internacional, em Agosto de 2009, era detido. “Passei dez meses preso. Houve uma campanha internacional, o [então eurodeputado] Rui Tavares participou e estava lá quando fui libertado”, recorda.
“O ridículo disto tudo é que tudo aquilo que nós defendíamos acabou por se concretizar, chama-se HPD e agora é a terceira força política do país”, diz.
O HDP (Partido Democrático do Povo) é a última encarnação de partido pró-curdo na Turquia (as anteriores tentativas foram sucessivamente ilegalizadas). Em Junho do ano passado, tornou-se na primeira formação pró-curda a apresentar-se a votos (antes, os políticos curdos candidatavam-se como independentes, para não arriscarem ficar de fora por não chegarem aos 10%, a fasquia mínima que prejudica os pequenos partidos) em legislativas. O HPD não só entrou na Assembleia Nacional, com 80 deputados, como roubou a maioria absoluta ao AKP, o partido no poder desde 2002, o mesmo do Presidente, o islamista Recep Tayyip Erdogan.
Festejos e guerra
Nas listas do HDP, havia homossexuais e 50% dos candidatos eram mulheres. “Nós, o partido dos oprimidos da Turquia que querem justiça, paz e liberdade, alcançámos uma grande vitória”, festejou Selahattin Demirtas, o advogado que é o líder do partido. “É a vitória dos trabalhadores, dos desempregados, dos aldeões, dos agricultores. É a vitória da esquerda.”
Nesse dia de Junho de 2015, o que o HDP conseguia em Ancara era celebrado com fogo-de-artifício, buzinadelas e disparos para o ar no Curdistão turco, mas deixava igualmente em ambiente de festa muitos curdos iraquianos e, principalmente, sírios (onde milícias apoiadas pelo PKK enfrentam os combatentes de Bashar al-Assad e os radicais do Daesh).
Os curdos são o maior povo sem Estado, 30 a 40 milhões de pessoas. O fim do Império Otomano dispersou-os por quatro nações. São um povo, mas não são homogéneos e nem todos querem um só país, um único Curdistão, embora muitos o desejem. Concentrados na Turquia, no Iraque, na Síria e no Irão, são entre 15% e 30% dos 80 milhões de turcos.
Aos festejos em Diyarbakir e em todo o Sudeste seguiu-se, em Agosto, o regresso da guerra. Os curdos a quem Erdogan começou por chamar “turcos das montanhas” e com os quais depois disse querer fazer a paz, voltavam a ser rotulados de “terroristas”, colocados ao mesmo nível do Daesh. Se há mais justiça poética na Turquia pós-tentativa de golpe de Estado é que o Governo do AKP diz agora que o movimento acusado de ser liderado pelo imã Fethullah Gülen “é pior do que o PKK”.
Nada para salvar
Os curdos não esperam que nada mude para melhor. A pobreza vai continuar, o desemprego também. No último ano, fecharam mais de 80 fábricas, que despediram 2000 pessoas. As crianças continuam a só falar curdo e o curdo já não é proibido como língua de ensino, mas continua fora das escolas públicas, só existe nos colégios privados onde poucos têm dinheiro para inscrever os filhos.
No resto da Turquia, todas as noites há gente a buzinar e cantar em celebração pelo fracasso do golpe. Por aqui, cada noite de paz é razão para se festejar estar-se vivo. E até se evitam os festejos. Parece que de cada vez que há razão para festa o pior está para vir – em Julho de 2015, duas zonas da Cidade Velha de Diyarbakir, a fortaleza e os jardins na margem do rio, foram consideradas Património Mundial pela UNESCO; meses depois, eram destruídas até os arqueólogos considerarem que não há nada para salvar.
Demirtas aproveitou o golpe para se oferecer para mediar novas conservações. Ignorado pelo AKP e por Erdogan, que se já se reuniu com todos os líderes da oposição menos com ele, disse no domingo que o Governo e o Presidente desperdiçam a oportunidade para a paz com a sua retórica nacionalista.
Certo, há militares detidos e espera-se que seja travada a nova lei que aumentava ainda mais a imunidade dos militares a actuar no Sudeste. O reverso é que um reforço das leis antiterrorismo terá necessariamente consequências para estas populações. Já está a ter, aliás – cada vez que um jornalista incómodo para o Governo é detido (foram mais de 40 nos últimos dias), o mais provável é que os curdos percam um aliado.
As ruas de Diyarbakir estão calmas, com os seus bairros feitos em pó, destroços a que nem o chão escapou, pelo menos 800 edifícios foram destruídos.
As muralhas da Cidade Velha (parte delas “zona militar”) estão de pé, mas não resta nada do que antes havia entre elas e o Tigre, a zona classificada pela UNESCO – são montanhas de lixo. Agora, não há recolher obrigatório em vigor; alguns duraram 100 dias seguidos e houve cidades em que foram declarados 71 vezes. À noite, a iluminação pública é quase inexistente, mas isso não tira ninguém da rua. Os dias são de mais de 40 graus. A noite é das estrelas.
“Os jovens? Sim, os jovens só não saem daqui se não puderem. Mas não são só os jovens. Ninguém quer ficar. Os pais têm medo pelos filhos, os avós pelos netos”, diz Yavuz. “Só fica mesmo quem não tem uma oportunidade. Isto não é vida para ninguém. Que futuro é que pode haver?”