Ctrl+alt+delete: O que vem depois de Mr. Robot deitar abaixo o sistema?
"A sociedade moderna no contexto da tecnologia e os seus efeitos sobre a interacção humana" é como o criador da série a descreve ao PÚBLICO quando a segunda temporada chega a Portugal. Ah, e Mr. Robot joga Pokémon Go.
Mr. Robot enfrenta o desafio que muitos músicos ou realizadores já ultrapassaram - ou falharam redondamente ao tentá-lo. O desafio do segundo. O segundo álbum, o segundo filme… a segunda temporada. O que vem depois de se deitar abaixo o sistema? Where is my mind quando há mais vozes na cabeça? Ctrl+alt+delete, ou como diz o criador da série ao PÚBLICO, eis “a sociedade moderna, no contexto da tecnologia e como ela afectou a interacção humana”. Mr. Robot regressa domingo à televisão portuguesa, às 23h no TV Séries.
A tecnologia quotidiana, nos seus momentos mais inesperados ou bizarros, está sempre com Mr. Robot (afinal, ela está em quase todo o lado). A primeira temporada, esse sorrateiro êxito para uma enorme minoria que chegou no Verão de 2015, estava a ser filmada quando o ataque informático à Sony dava um abanão inusitado à relação entre os EUA e a Coreia do Norte, e foi para o ar quando só se falava no hack ao site de infidelidade Ashley Madison. Agora, com a segunda temporada, Pokémon Go. E sim, o próprio Mr. Robot joga Pokémon Go.
Christian Slater levantou uma mão solitária e envergonhada quando, na convenção Comic Con de San Diego, perguntaram no painel dedicado à série se os actores jogam. A ironia não lhe escapou. Slater é o rosto de uma rebelião de um grupo de hackers contra uma empresa que simboliza (e reúne) o mundo de conglomerados, o big money, os 1% e o controlo tecnológico que está no centro da série. O objectivo do grupo é eliminar toda a dívida do mundo. E agora Slater está a participar no que Oliver Stone considera “um novo nível de invasão” por parte do “totalitarismo” tecnológico. Carly Chaiken, ou a hacker Darlene na série, foi clara: “Do ponto de vista de Mr. Robot, sabem o nível de acesso que estão a dar quando se inscrevem para jogar esse jogo?”.
Mr. Robot é uma série que exige do espectador. Não só um pensamento crítico em relação ao mundo, mas também empenho e atenção – algures entre a crença e a desconfiança. Nem tudo é o que parece. É irredutivelmente contemporânea no mundo que filma e no comentário que faz sobre o real. E exigente, porque o seu protagonista, Elliot Alderson (Rami Malek), é o mais convincente narrador duvidoso da televisão. A premissa: um jovem “hacktivista” de Nova Iorque que trabalha em segurança informática alia-se ao grupo fsociety e ao seu líder, Mr. Robot (Christian Slater), para atacar a grande empresa que tudo domina, a E(vil) Corp.
E aqui começam os dois parágrafos em que há spoilers sobre o final da primeira temporada: a personalidade e a tragédia familiar de Elliot enleiam-se nessa tarefa, que termina com a concretização do ataque que faz colapsar o sistema.
Take 2, temporada dois, mais 12 episódios. Um mês depois dos acontecimentos da primeira temporada, Elliot refugiou-se sem conseguir fugir de si próprio, ou de Christian Slater. É que Mr. Robot é, afinal, uma espécie de alter ego de Elliot à imagem do seu falecido pai. “Descobrir algo assim é uma coisa. Tentar sobreviver a isso e geri-lo é todo um outro animal”, disse Malek ao New York Times. Muito do conflito será entre Elliot e Mr. Robot e Darlene, que têm objectivos distintos num mundo que ficou diferente.
A série também é sobre o que é estar só num mundo ilusoriamente gregário – diz Elliot na primeira temporada, num monólogo de rara vivacidade, que “as redes sociais fingem intimidade”. E é um programa algo polarizador porque nomeia celebridades, critica gigantes da tecnologia, tudo num canal que pertence ao gigante Universal. Elliot vocifera, sobre imagens de Lance Armstrong, Bill Cosby ou Mel Gibson, que “parece que todos os nossos heróis são contrafeitos”.
O PÚBLICO perguntou a Sam Esmail, autor de um discurso que cruza a actualidade e a ficção e que foi influenciado por assistir, no Egipto de onde vem a sua família, à Primavera Árabe, o que considera mais desafiante – construir uma narrativa como a da série, plena de armadilhas, ou a história que rodeia a vida quotidiana e as suas lutas de poder.
“Honestamente”, começa a responder o criador da série, “diria que não sei". "O que posso dizer é que me propus contar uma história sobre hoje, sobre a sociedade moderna, no contexto da tecnologia e como ela afectou a interacção humana. Não é necessariamente uma série sobre tecnologia ou uma narrativa sobre tecnologia, mas sobre humanos e as dinâmicas sociais dos humanos nesse contexto. Talvez isso acrescente uma camada de complexidade, mas não estava necessariamente consciente disso. Estava só a tentar ser honesto ao contar uma história”.
Sam Esmail é admirado, nomeado, premiado. A série tem Globos de Ouro e o Prémio Peabody. Está a despontar num meio que sempre foi, teoriza-se, dos showrunners e dos argumentistas e no qual agora o cineasta Steven Soderbergh, em The Knick, ou Cary Fukunaga, em True Detective (primeira temporada), realizam todos os episódios das suas séries. Esmail fá-lo em Mr. Robot, e isso nota-se; em 2017 David Lynch fará o mesmo com os 18 novos episódios de Twin Peaks. No meio dos argumentistas (contra o cinema, o chamado "meio dos realizadores") escavou-se um espaço autoral também para o olhar do realizador, que aqui acumula com a produção e a escrita de muitos dos guiões de Mr. Robot.
A sua abordagem holística vai desde o título de cada episódio às cores dos ambientes que filma, bem como ao código que surge no ecrã e Mr. Robot não hesita em citar – a imagem da fsociety é uma máscara, uma caricatura zangada e sarcástica do sr. Monopólio, como os Anonymous usam a máscara de V de Vingança; Elliot é um rebelde com carga também no vestuário, o seu capuz; até a fotografia da série evoca, em parte, os ecrãs com que vivemos a toda a hora e as imagens podadas do Instagram. Nem hesita em pilhar – tem uma admiração confessa por David Fincher e pelo Clube de Combate de Chuck Palahniuk, o mecanismo do alter ego assim o prova, e evoca Where is My Mind?, dos Pixies, como no filme.
Já faz parte da curta lenda de Mr. Robot que Edward Snowden é espectador e que tem uma espécie de aprovação vinda dos Anonymous, os que fazem, de facto, do código uma arma. As teorias sobre o que é real ou não em cada interacção de Elliot são outra parte do que é Mr. Robot, série que, de forma inédita, “pirateou” a sua própria emissão no Facebook Live – interrompeu o que era anunciado como uma sessão de perguntas e respostas para exibir de surpresa, três dias antes da data prevista, a primeira hora do seu episódio duplo de estreia. Depois, o episódio surgiria no Twitter, no Snapchat e no YouTube.
Outros sinais dos tempos: as audiências não estão a crescer, mas a aposta em Mr. Robot continua. Tem agora, como as duas séries-fenómeno do momento, The Walking Dead e A Guerra dos Tronos, o seu próprio programa de análise após cada episódio nos EUA; foi buscar uma das filhas de Meryl Streep, Grace Gummer, e o rapper Joey Badass para o elenco; e Malek e Mr. Robot são dignos candidatos aos Emmys de Setembro.