O peso de um passaporte: emigrantes portugueses no Reino Unido pós-“Brexit”
Vivem e trabalham em Inglaterra, tiveram filhos, têm empregos e teses e muita incerteza. O voto no Brexit não foi (só) sobre a Europa, mas foi sobre os estrangeiros. “Quem é que não me quer aqui?”
Havia sinais, sentidos na tensão de um pub, nas conversas dos empregadores ou na retórica dos políticos, mas esta manhã os portugueses que vivem em Inglaterra acordaram com os ecrãs a dar o veredicto do referendo: o país em que vivem afinal é outro, “não me quer”, no autocarro viajam aqueles que “votaram para eu me ir embora”. Sabem que pouco ou nada vai mudar no imediato, salvo que a próxima vinda a Portugal se tornou mais cara porque a libra desvalorizou a pique ou a bolsa que chega em euros despertou a valer bem mais. Mas há objectos que ganham novo simbolismo, como o passaporte.
O ecrã do computador brilha, mas esta definitivamente não é uma manhã produtiva para Frederico Rodrigues, investigador português que vive há dez anos no Reino Unido e que mora e trabalha em Bristol. O mesmo acontece, a milhas de distância, a Lara Torres em Londres, que tenta escrever a tese de doutoramento. Ana Fonseca rouba tempo ao almoço para falar com o PÚBLICO numa rua do centro da capital britânica, Madalena Dourado faz uma pausa nas limpezas na casa do patrão para um telefonema sobre “revolta” – dos ingleses contra os imigrantes.
O músico Diogo Vasconcelos também está em Londres e pensa em adereços para uma nova vida, João Duarte Ferreira votou “remain” e está de volta à redacção onde trabalha. Os portugueses ouvidos pelo PÚBLICO oscilam entre o “choque” e o esperado que gostariam que não se tivesse confirmado. Uns dormiram e acordaram com a notícia, mas João Medeiros, que ficou acordado para saber o resultado do referendo, garante que “pouca gente conseguiu dormir” na noite da decisão.
Numa espécie de modo Keep calm and carry on, o tão desgastado lema da propaganda britânica da II Guerra, a sexta-feira corre com pausas para debater o sucedido, mas sem sinais de alerta sobre o futuro. Preocupam-se por constatar que “ninguém tem um plano” e que, estejam há pouco ou há muito tempo em Inglaterra, sobre o estatuto que terão “há uma certa ignorância”, como descreve Medeiros, editor de Ciência da edição britânica da revista Wired. A facilidade de circulação está a ser usada para planear a potencial fuga por outros portugueses. “Neste momento as reacções de vários artistas que vivem cá são de ponderar sair e falam de Berlim como alternativa”, comenta Lara Torres. “Londres já se tinha tornado demasiado caro, mas sentíamo-nos bem-vindos.”
Por outro lado, a preocupação do momento em que pouco se sabe é, para alguns, sobretudo simbólica ou de valores.
Há coincidências como a de ser esta sexta-feira o dia de renovar o contrato de aluguer da casa por mais um ano, como no caso de Lara Torres, designer de 39 anos, que está a terminar a tese de doutoramento sobre o desenvolvimento de uma estratégia crítica no design de moda em Londres. “Percebes que não te querem cá. Os números dizem-me isso e é uma sensação mesmo estranha.”
Vive no Reino Unido desde 2009, com um ano de interrupção e um regresso em 2013 até agora. “Ontem decidi ir almoçar com vários amigos, imigrantes, a um pub inglês e foi uma péssima ideia. O clima estava muito tenso”, lembra-se sobre a sensação de falso conforto que tinha ao acreditar no “remain”. Dá aulas ocasionalmente na Universidade de Rochester, perto de Kent, e tem “estado a preparar o futuro, a concorrer a empregos para continuar a vida académica no Reino Unido. Talvez isso mude … Não sei se deveria planear o meu futuro num país que não me quer. Nem tinha posto outra hipótese…”, suspira.
Diogo Vasconcelos, músico, 46 anos, acordou a pensar que tinha chegado “a hora de comprar o seu guarda-chuva, um chapéu e deixar crescer o bigode”. Desde os anos 1970 a viver em Londres, onde chegou vindo de Moçambique depois de uma passagem por Lisboa para estudar, nunca sentiu necessidade de mudar de passaporte. “Nunca pensei em ficar britânico, porque Portugal a certa altura se tornou parte da Europa e no aeroporto deixei de ter de ir para uma fila de passaportes diferentes. É engraçado como ligamos a identidade a uma coisa abstracta como o passaporte.”
Os problemas que tem para resolver são, provavelmente, mais simbólicos do que reais, uma vez que tem estatuto de residente.
“Mas não sei, tenho que perceber a situação.” Os filhos são britânicos e a mulher tem nacionalidade inglesa e brasileira. Todas as pessoas com que falou esta sexta-feira, para lá do “choque” e do “embaraço” de viverem num país que tem medo dos imigrantes, estão a tentar pensar sem ser de uma forma maniqueísta: nem todos os que votaram “Brexit” são “racistas” e “paroquiais”, nem todos os do lado do “remain” são “modernos” e “mais reflectidos e abertos”. “A maior parte das pessoas que votaram sim reconhece que havia alguns argumentos válidos no ‘Brexit’.” Depois, há uma sensação forte de que a classe política tem uma relação com o sul, mas não com o resto do país. “Há uma percentagem significativa que votou pela saída, que conseguiu identificar alguns dos seus problemas e frustrações neste debate.”
João Medeiros, de 36 anos, acredita que o papel que cada cidadão depositou nas urnas no referendo de quinta-feira “não foi um voto à Europa, não teve nada a ver com a Europa. Não se debate a Europa mas sim raivas e frustrações” que se ligam a temas sociais tão amplos quanto a imigração, a luta de classes e, frisa, as “classes totalmente esquecidas pelas elites, o mesmo fenómeno que se passa nos EUA”. E será financeira a principal consequência do “Brexit”, defende o editor.
Lara Torres recebe “uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia, dada pela União Europeia (UE), que é em euros”, ri-se nervosamente. “Neste momento as consequências são bastante directas, a meu favor até, porque a quebra da libra foi tão violenta que chegou a níveis de há 30 anos”, diz, enquanto Ana Fonseca, de 29 anos, dá o reverso da medalha. “Vou a Portugal de férias em Agosto e as minhas férias acabaram de ficar mais caras quando acordei esta manhã”, constata ao telefone à porta do hotel, em Liverpool Street, onde trabalha em marketing e vendas da área de restauração e bares. Frederico Rodrigues, de 33 anos, tem como pequeno consolo o facto de a Bristol onde vive e trabalha ter, como Londres, votado “remain”, mas trabalha em ciência e “a maior parte do financiamento vem da UE e não deve vir mais para aqui no futuro. Não sei qual será o futuro da ciência neste país. Já é difícil arranjar emprego e sem financiamento será ainda pior”.
Quinta-feira foi dormir com esperança, sexta-feira acordou com o choque. “Sou casado com um inglês, tenho muitos amigos ingleses e não são essas pessoas que votaram para sair, não são eles essa população xenófoba que votou para sair”, explica sobre a surpresa que sentiu sobre o que pensa parte do país - “que me deu muitas oportunidades, que é a minha casa”. Firmemente estabelecido em Inglaterra, lamenta o “medo da diferença. Um dos motivos que me fez mudar para aqui é que era um país liberal, que lutava pela diferença e pela igualdade. Agora não é o país para qual me mudei”, diz. O “Brexit” “mudou um pouco a minha perspectiva das coisas. Hoje a caminho do trabalho olhava para as pessoas nos transportes e perguntava-me: ‘Quem é que não me quer aqui?’”.
Geração Europa
“Pela primeira vez senti que o meu futuro estava nas mãos de outras pessoas, porque não posso votar.” Ana Fonseca vive há quatro anos em Londres. Faz parte de uma geração que nasceu à porta da União Europeia e para quem Schengen, Erasmus ou livre circulação são termos dados como garantidos. Agora, sente a possibilidade de um fechamento. “Não será tão fácil do que quando crescemos, crescemos com as portas abertas”, diz. Imagina problemas nos aeroportos, fronteiras e linhas imaginárias que até agora atravessava de forma fluida. Os seus planos não mudam, mas não sabe o que vai mudar na relação do país onde escolheu trabalhar. “Sou uma cidadã europeia e estou a trabalhar no Reino Unido”, define-se. “Não tenho visto nenhum nem estatutos” porque nunca precisou.
Já João Duarte Ferreira, jornalista, pôde votar neste referendo. “No ano passado adquiri dupla nacionalidade e agora sou também cidadão britânico. Fi-lo porque queria participar em todos os processos democráticos, depois de 21 anos a viver aqui, e também como forma de acautelar a minha posição”. “Apreensivo” com o resultado, não ficou surpreendido e adivinha, como João Medeiros, “um problema de liderança. Não tenho confiança em Boris Johnson e não vislumbro qual a estratégia que pretende seguir”. A televisão e essa demissão do primeiro-ministro marcou a manhã de Madalena Dourado: “ver o Cameron, até ele, a desistir”.
Tem 40 anos e está em Londres há 21, trabalhando como empregada doméstica. Veio de Monforte, no norte de Portugal, e o pai já tinha sido imigrante em França durante seis anos. É mãe de dois filhos nascidos já em Inglaterra. O filho de 16 está no liceu e a filha de 20 estuda na London School of Economics, e ela serviu-lhe de barómetro para um dos fenómenos que esperava que mantivesse o Reino Unido na EU: a campanha para o recenseamento e para o voto jovem, que de facto votou maioritariamente “remain”.
Agora, “a única coisa que é pacífico dizer é que vai haver instabilidade durante os próximos anos, num país que pertence à UE há 43 anos”, defende João Duarte Ferreira, apesar da distância dos ingleses da mesma e das “campanhas negativas dos media conectados com a direita – seja os jornais The Sun e The Times ou a Sky News, que pertencem ao australiano Rupert Murdoch que diz: ‘Quando venho ao Reino Unido sou recebido em Downing Street, mas quando vou a Bruxelas ninguém sabe quem eu sou’. Isto diz tudo sobre a sua posição face à União Europeia.”
Mais do que distância em relação ao conceito da comunidade europeia, Madalena Dourado identifica “revolta”. É o sentimento que diagnostica nos ingleses perante as vagas de imigração polaca, como exemplifica, ou a presença de árabes nas ruas. “Queriam mostrar a sua revolta porque acham que lhes roubam o trabalho, mas na realidade não estavam à espera” do resultado.
Os filhos “têm o direito de estar aqui”, mas Madalena Dourado viveu 21 anos a achar que “o cartão do cidadão chega”. “Nunca pedi o passaporte porque achei que não precisava. Até hoje de manhã”. com Isabel Salema e Vítor Belanciano