Esterilização de deficientes: Governo averigua denúncias sobre um tema “tabu”
Nas últimas semanas falámos com representantes de associações de pessoas com deficiência, juristas e médicos sobre um tema “tabu”. A ONU denunciou casos de esterilização de deficientes contra a sua vontade. Há quem diga que há um vazio legal. E quem considere que não.
Uma jovem de 20 anos, com um défice mental profundo, foi esterilizada, no ano passado, no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira. A mãe tinha pedido ao hospital para a filha ser submetida a uma laqueação de trompas e assim evitar uma eventual gravidez. O hospital começou por dizer que só o poderia fazer com uma decisão judicial nesse sentido. É isso, aliás, que está previsto no Código Deontológico da Ordem dos Médicos: “Em casos de menores ou incapazes, os métodos de esterilização irreversíveis” implicam “sempre” o “prévio consentimento judicial”. Mas, no caso desta jovem, acabou por acontecer algo diferente.
Segundo confirmou ao PÚBLICO Miguel Paiva, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, que integra o Hospital de São Sebastião, em vez de pedir uma autorização judicial para a esterilização, a mãe dirigiu-se ao tribunal, sim, mas para requerer a interdição da filha — a figura legal da interdição significa, no caso de pessoas com anomalia psíquica, que estas são equiparadas a um menor de idade, não podem votar, gerir património ou perfilhar, por exemplo; ao tutor designado pelo tribunal cabe zelar pelo bem-estar, saúde e educação do interditado.
Algum tempo depois, a mãe da jovem de 20 anos voltou ao hospital, demonstrou que passara a ser a tutora legal da filha e “fez muita pressão” para que a laqueação de trompas acontecesse, explica ainda Miguel Paiva. Os médicos avaliaram de novo e acabaram por realizar, em 2015, a intervenção, depois de a mãe da jovem “assinar a declaração de consentimento informado”.
Não há uma lei específica que enquadre este tema da esterilização de deficientes — há um “vazio legal”, na opinião de Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos. Quando confrontada com a descrição do caso da jovem de 20 anos, diz que ele “é bem ilustrativo desse vazio legal”. Na sua opinião, o que se passou “configura uma situação de violação do direito à integridade física e de abuso de poder”, algo que, julga, “continua a ser frequente”.
Já André Dias Pereira, jurista, presidente da direcção do Centro de Direito Bioético, nota que “o Direito é mais, muito mais do que a lei”. É composto de doutrina, pareceres e regulamentos, como o Código Deontológico dos médicos. “Nenhuma dúvida tenho de que é preciso autorização judicial [específica para a cirurgia], pois a esterilização pode justificar-se em alguns casos, sim; mas pode não se justificar noutros, em muitos outros. E os pais ou tutores não têm a imparcialidade necessária para tomar essa decisão sozinhos”, afirma. “Não basta os tutores e o médico, na tranquilidade de um consultório, decidirem isto.”
Haver um processo, uma decisão de um juiz, de um tribunal é o garante de que a intervenção é do interesse da pessoa com deficiência, sustenta. “Assim sendo, esse hospital cometeu uma violação do procedimento previsto pelo Direito e podem os médicos estar sujeitos a responsabilidade disciplinar.” É a opinião deste especialista.
Rui Nunes, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, faz uma apreciação do caso, que lhe é relatado pelo PÚBLICO, “apenas do ponto de vista ético”. E é esta: “De acordo com princípios éticos consensuais e com as normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, devia ter-se obtido consentimento judicial.”
O assunto é difícil e polémico. No final de Abril, tal como o PÚBLICO noticiou, foi divulgado o relatório do comité das Nações Unidas que avaliou como aplica Portugal a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo país em 2009. Nele denuncia-se que pessoas com deficiência, “especialmente aquelas que foram declaradas legalmente incapacitadas, continuam a ser, contra sua vontade, objecto de interrupção da gravidez, esterilização” e outras intervenções.
Os peritos da ONU manifestam a sua preocupação com estas situações. E aconselham o país a tomar medidas para “assegurar que se respeita o direito ao consentimento livre, prévio e informado do tratamento médico e que se proporcionam mecanismos de apoio” às pessoas com deficiência para que estas possam tomar decisões.
Tema “tabu”
O PÚBLICO questionou a secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, sobre os alertas do comité das Nações Unidas. As respostas chegaram via assessoria de imprensa do gabinete do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, por escrito. Foi “com especial preocupação e apreensão” que o Governo teve conhecimento desse relatório, começa por dizer a nota.
O gabinete de Vieira da Silva garante que “o Governo está a recolher dados e informações sobre este assunto”. E “o mesmo deverá ser discutido no âmbito da alteração que está em curso sobre a legislação relativa aos regimes de interdição e de inabilitação” legal. Para já, nunca foi reportada ao Executivo “a existência de qualquer das situações descritas”.
Mas, acrescenta, “dada a complexidade da matéria, exige-se um estudo e acções concertadas em vários domínios sectoriais, nomeadamente na Saúde, Justiça e na Segurança Social, para os quais se conta com o envolvimento de um conjunto de especialistas”. E remata sublinhando a importância de “mobilizar toda a sociedade, de modo a que seja assegurado o respeito integral pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.
Estamos a entrar no domínio de um tema que ainda é “tabu”, avisa Julieta Sanches, presidente da direcção da Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social (que recebeu o Prémio Direitos Humanos 2013, da Assembleia da República), uma das muitas instituições contactadas pelo PÚBLICO nas últimas semanas, desde que o relatório do comité da ONU foi conhecido.
No seu gabinete da Cerci (Cooperativa de Educação e Integração de Cidadãos com Incapacidades), em Lisboa, Julieta Sanches, ela própria mãe de uma pessoa com deficiência, diz ao PÚBLICO que tem conhecimento de alguns casos — ainda que poucos — de pessoas que frequentam a instituição que dirige, em Lisboa, que foram esterilizadas.
Tomar “este tipo de decisões”, garante, “é muito doloroso” para os pais. Ela nunca deu esse passo. E diz que em muitos casos não se justificará. Mas noutros sim. E o assunto é demasiado complexo, afirma, para que se façam generalizações ou se aprove uma “legislação cega”. Há muito a ponderar.
Não há dados oficiais
Regressando a Santa Maria da Feira. Miguel Paiva, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, diz que a esterilização da jovem de 20 anos não levantou dúvidas aos médicos porque a comissão de ética daquela unidade de saúde tinha considerado, numa primeira avaliação, que a laqueação de trompas poderia acontecer se houvesse uma avaliação a atestar a sua necessidade e uma decisão judicial nesse sentido. “Porque havia este parecer da comissão de ética, de alguma forma ele enquadrava a possibilidade de isto ser realizado, porque o tribunal decretou a interdição” da jovem, justifica Miguel Paiva.
Mas esta posição é controversa, como já se percebeu. Para além do Código Deontológico dos médicos, também a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) publicou, em 2009, um relatório sobre “Consentimento informado”. Onde se diz que “se exige autorização judicial” em casos de “esterilização de incapazes adultos”.
E há ainda um parecer de 2001, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre um caso de laqueação de trompas numa menor de 16 anos com deficiência mental. “O indispensável recurso a tribunal de menores deve ser instruído por um relatório em que se demonstre que o atraso mental é profundo e irreversível, que a laqueação das trompas uterinas é o único procedimento contraceptivo credível no caso em apreço e ainda que não há esterilidade (que não é rara nos deficientes mentais profundos)”, lê-se no relatório com base na qual foi feito o parecer.
Um dado curioso: este parecer de 2001 foi suscitado, precisamente, por um caso — outro que não o da rapariga de 20 anos — com o qual o Hospital de São Sebastião teve de lidar, há 15 anos. Também fomos conhecer essa história.
Paula Campos Pinto faz questão de sublinhar que foram as associações que trabalham na área da deficiência em Portugal, e que constituem o conselho consultivo do Observatório da Deficiência (17 no total), que “insistiram que esta questão [da esterilização] fosse referida” no documento que fizeram chegar ao Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência, no âmbito da avaliação da ONU a Portugal. Quiseram, assim, dar visibilidade ao tema.
“Embora não haja dados oficiais sobre o recurso à esterilização de adultos com deficiência, de acordo com as instituições, muitos familiares ainda continuam a recorrer à esterilização forçada de adultos com deficiência”, lê-se nesse documento de Janeiro deste ano, dirigido aos 18 peritos independentes do comité.
“Acusação excessiva”
Como encarar a acusação de que há esterilizações forçadas? “Desconheço completamente a situação e nunca nenhum caso foi reportado à Ordem dos Médicos, que seja do meu conhecimento”, respondeu ao PÚBLICO, por escrito, o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva.
O bastonário presume que situações como as descritas “serão pouco frequentes” e afirma que “gostaria de ter acesso aos dados/informações que motivam esta intervenção/relatório” da ONU.
Rui Nunes segue a mesma linha nas respostas que mandou ao PÚBLICO. “Creio que [a acusação da ONU] é excessiva, dado que Portugal tem feito um enorme esforço, a nível do Governo central, das autarquias, do Sistema de Saúde, para promover os direitos inalienáveis das pessoas portadoras de deficiência. Em todo o caso, a existir, são casos pontuais que devem ser sinalizados e deve ser clarificado qual o contexto em que a esterilização involuntária foi utilizada e os motivos que presidiram à sua utilização.”
Este especialista em bioética, ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, lembra, de resto, que há cada vez menos necessidade de recorrer à esterilização porque são cada vez mais as “alternativas farmacológicas não-invasivas e não-irreversíveis para controlar este tipo de problema”. O Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, da Direcção-Geral da Saúde, recomenda para mulheres com deficiência mental a contracepção hormonal injectável (cujo efeito se prolonga por três meses) ou por implante (duração até três anos).
Sobre a ideia de que há um “vazio legal”, discorda. “Penso que não há nem vazio legal, nem deontológico”, diz Rui Nunes. “O Código Penal é bastante claro no que respeita a intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos (Artigo 150.º): ‘As pessoas … que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias …’. Pelo que conjugando o Código Penal com o Código Deontológico penso que se pode afirmar que existe um enquadramento ético-jurídico suficientemente robusto.”
“Há 15 anos, havia médicos que me diziam: ‘A pessoa entra na instituição e no dia seguinte faz-se a laqueação, não é problema, os pais querem, faz-se’”, conta André Dias Pereira. “Nos últimos anos, sobretudo desde que o Código Deontológico veio espelhar — de forma curta, mas está lá — a exigência de que isto passe por um tribunal, as coisas vão melhorando. Mas é como em tudo: haverá instituições onde não é respeitado, a pedido das próprias famílias das pessoas com deficiência”, afirma o jurista. “Estamos a falar de ‘crimes sem vítimas’ que é uma expressão que se usa quando as vítimas não têm capacidade de se queixar.”
E a propósito de queixas, à Provedoria da Justiça, segundo disse recentemente ao PÚBLICO o provedor José de Faria Costa, “nunca terá chegado nenhum caso”. Seja como for, Faria Costa é categórico: qualquer esterilização forçada “é intolerável”.
Adolescentes esterilizadas
Fala-se pouco sobre este tema. Mas há algumas publicações a abordá-lo. Por exemplo, está disponível na Internet o artigo “Problemas ginecológicos em adolescentes com patologia neurológica”, publicado num número de 2008 da Acta Pediátrica Portuguesa e assinado por três médicos, à altura todos do Hospital de Dona Estefânia.
O artigo faz uma revisão de casos de adolescentes “referenciadas da consulta de Neuropediatria para a consulta de Ginecologia de um hospital materno-infantil, entre Janeiro de 1998 e Maio de 2007”. Revela que, em 37 adolescentes com défice cognitivo, oito das que apresentavam um défice cognitivo profundo “foram esterilizadas por necessidade de contracepção e/ou dismenorreia intensa [dores menstruais], menorragia [período menstrual intenso] ou dificuldades com a higiene menstrual”.
As intervenções são descritas assim: “Quatro laqueações tubárias laparoscópicas, duas histerectomias supracervicais e duas histerectomias totais.”
Concluem os autores que estas intervenções foram fundamentadas “na comprovação do défice cognitivo e da sua irreversibilidade, na avaliação do risco de gravidez e na incapacidade para a maternidade responsável”. Nada é dito sobre se houve autorização judicial prévia.
Um dos autores, o pediatra Filipe Silva, que o PÚBLICO contactou, fez saber que essa informação não foi na altura recolhida. “O nosso trabalho foi retrospectivo, isto é, por consulta dos processos clínicos do arquivo. Não fiz levantamento de dados do processo de decisão/consentimento informado da cirurgia.” Filipe Silva deixou o Hospital de Dona Estefânia em 2008, quando terminou a especialidade de Pediatria.
O artigo de que é co-autor refere vários dos dilemas que este tipo de intervenções colocam. “Para alguns autores e profissionais de saúde, a esterilização é considerada o método contraceptivo mais fiável para as mulheres com défice cognitivo, tendo em conta as dificuldades de adesão à terapêutica relacionadas com as dificuldades na compreensão e com problemas comportamentais. É também considerada como uma medida de segurança na perspectiva do risco futuro, quando os pais deixarem de estar presentes. Contudo, estas opções terapêuticas mantêm-se controversas por vários motivos de ordem ética e legal e pela memória de situações de abuso no passado, com programas de esterilização forçada de pessoas com diversos tipos de desvantagem. Estes programas, iniciados nos EUA no princípio do século passado, estenderam-se até aos anos 70, passando também pela Alemanha nazi e por outros lugares um pouco por todo o mundo.”
Desde então, em vários países, legislou-se para que esses abusos não voltassem a ser possíveis. Em Portugal, a Lei 3/84, sobre esterilização voluntária em indivíduos maiores de 25 anos, não prevê, ao contrário do que acontece noutros países, situações de esterilização de deficientes mentais. “A maioria dos autores advoga que as decisões que caem nestes vazios legais devem ser partilhadas por profissionais de diferentes áreas, com pareceres de Comissões de Ética e, eventualmente, dos tribunais”, prossegue o artigo da Acta Pediátrica Portuguesa, mas outros consideram “estas medidas excessivas”. Teme-se pela demora dos processos em tribunal, e teme-se, também, que se feche a porta “a intervenções com benefícios inequívocos” para as pessoas com deficiência.
Apesar dos pedidos feitos ao longo de várias semanas, o Centro Hospital de Lisboa Central não respondeu ao PÚBLICO sobre que procedimentos foram adoptados nos oito casos descritos neste artigo, nem sobre quantas intervenções semelhantes foram realizadas de 2007 até agora, quer no Hospital Dona na Estefânia, quer na Maternidade Alfredo da Costa.
Perguntámos também ao centro hospitalar do Porto sobre situações deste tipo. Fez saber apenas que “não tem casos destes”.
A rapariga que queria ter filhos
“Houve uma pessoa de uma instituição que trabalha com pessoas com deficiência que me contou o seguinte: uma rapariga que frequentava a instituição tinha sido esterilizada, mas não sabia e falava continuamente sobre o seu desejo de ter filhos e de ser mãe”, relata Paula Campos Pinto.
“Não tinha a mínima ideia de que tinha sido esterilizada”, insiste. “Eu admito que os pais façam isto por ignorância, por incapacidade, por genuíno afecto e vontade de proteger a pessoa, mas é preciso trabalhar com esses pais e com essas famílias para lhes explicar que não é esta a melhor forma.”
A coordenadora do Observatório da Deficiência defende que, haja ou não intervenção de um juiz, a esterilização de uma pessoa sem o seu consentimento expresso viola o espírito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que estabelece, entre outras, que “as pessoas com deficiência, incluindo crianças, mantêm a sua fertilidade em condições de igualdade com os outros” e que todos são iguais perante a lei.
“Mas a ideia que ainda está presente nos espíritos é: ‘Esta pessoa é vulnerável, é dependente, vamos protegê-la, vamos, com base numa noção nossa do que é o melhor interesse daquela pessoa, protegê-la.’ Ora isto não é uma perspectiva de direitos humanos", defende Paula Campos Pinto.
Julieta Sanches tem dedicado a sua vida às Cerci, que têm como lema trabalhar para “a qualidade de vida das pessoas com deficiência intelectual e multideficiência”. Entende que não se pode simplesmente criticar as famílias que optam por uma laqueação de trompas das filhas — “As famílias têm medo das violações, porque estas pessoas não se sabem defender, têm receio de que as suas filhas engravidem, porque não são capazes de tomar conta dessa gravidez, e há uma maior probabilidade de os métodos contraceptivos não serem eficazes, porque estas pessoas não são autónomas.”
A rapariga que ia para o Cais do Sodré
Dos casos que conhece (e não conhece ninguém que tenha sido submetida a uma interrupção da gravidez, nos termos referidos no relatório da ONU), acredita que todas as intervenções feitas se justificaram. Apesar de achar que, em geral, são “decididas entre a família e o médico” sem autorização de mais ninguém. “É natural que os peritos da ONU estejam preocupados, mas acho que entrámos num exagero.”
Admite que “há casos em que a laqueação é feita sem que as jovens percebam o que se está a passar, porque não têm essa capacidade de apreender”, continua. Mas reforça: “Cada caso é um caso.”
Recorda uma história: “Há muitos anos, uma das nossas jovens do centro de formação fez uma laqueação. Ela fugia de casa e, durante a noite, andava na rua, com uns, com outros. Quantas vezes a nossa cozinheira, que era uma pessoa com quem ela tinha uma boa relação, a foi buscar às três da manhã ao Cais do Sodré, ao Intendente, enfim... Tinha uma deficiência ligeira, que é, por vezes, onde subsistem os maiores perigos, porque as pessoas são mais autónomas e, se têm um desejo sexual mais exacerbado, não percebem porque é que não podem... Vivia com uma irmã que não conseguia controlá-la e que tinha de trabalhar. Até que a irmã e o irmão falaram connosco. Nós aconselhámos a pílula, mas a decisão foi deles. A irmã já se via com uma série de sobrinhos sem ter capacidade de os sustentar.”
Julieta Sanches não sabe como foi feita a laqueação nesse caso. “Não sei se falaram com a jovem, se ela concordou. Era um caso muito complexo. Claro que o perigo das doenças [sexualmente transmissíveis], por exemplo, não se resolve. O dos abusos sexuais não se resolve com a esterilização...”
Esse é um dos problemas de fundo que Alice Cabral encontra “quando estamos a abordar estes temas”. Alice Cabral é coordenadora do Movimento Fé e Luz, presente em mais de 80 países, que integra comunidades de encontro e reflexão de jovens com deficiência, pais e jovens voluntários.
Diz-lhe a experiência de décadas a lidar com pessoas com deficiência que se uma jovem revela um comportamento muito sexualizado, como é relatado em alguns dos casos em que estas intervenções são feitas, isso está, muitas vezes, relacionado com o facto de ter sido alvo de abusos sexuais — aliás, muitos estudos mostram como a população com deficiência é especialmente vulnerável a abusos sexuais. “Pode até ser importante haver uma laqueação. Não tenho uma visão fechada. Mas se calhar a jovem precisa, sobretudo, de ter um projecto de vida dela, que a proteja dos abusos, em vez de lhe serem laqueadas as trompas. Há uma visão redutora: ‘Pelo menos não engravida, o resto’... o resto, se calhar, vai continuar a acontecer. E esta é a minha dúvida em relação a estes procedimentos.”
O que é ser humano?
“Em todas as legislações dos diferentes países, existem problemas relativamente à implementação do artigo 12 da Convenção [Reconhecimento igual perante a lei]”, afirma Paula Pinto. Por uma razão: “Levámos séculos a definir, a identificar a nossa humanidade com base na racionalidade. ‘Eu penso, logo existo.’ Descartes escreveu isto e desde então que pensamos assim: uma pessoa que não tem toda a sua capacidade intelectual é alguém que não tem uma existência exactamente humana e, a partir daí, tudo é possível. Mas nós precisamos de perceber que isto é um mau ponto de partida.”
Como assim? “Os novos conhecimentos que existem, nomeadamente no campo das ciências neuromédicas, têm mostrado que as emoções também nos distinguem enquanto seres humanos. E esta descoberta devia revolucionar a fundo aquilo que nós pensamos sobre as pessoas com deficiência.”
A adopção da Convenção, diz, vem trazer uma transformação radical: “Compete aos Estados criar os meios, os suportes necessários para que as pessoas possam tomar decisões e concretizá-las.”
Já Pedro Galveias, director técnico das actividades ocupacionais, da CERCIAG (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades de Águeda), garante que “as coisas não são tão terceiro mundistas como possa parecer” pelo relatório da ONU. Diz que “tanto as famílias como as instituições que trabalham com deficientes estão cada vez mais sensibilizadas para as questões dos afectos e da sexualidade desta população”, que têm sido desenvolvidos acções de formação a nível nacional nestas área (“que devem ser dirigidas a todos, desde às senhoras da limpeza aos técnicos”), e que é cada vez mais comum nas instituições os seus utentes namorarem e demonstrarem os seus afectos. Para impedir gravidezes indesejadas optam-se por métodos como os implantes hormonais, de longa duração. A laqueação não é algo que seja feito, diz, “é a minha experiência”.
Na prática, “quase todos os países admitem em certas circunstâncias a esterilização de doentes mentais profundos ou deficientes mentais profundos”, diz André Dias Pereira. Mas é um facto que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência coloca questões novas. “Agora, por vezes, a linguagem das convenções é uma linguagem proclamatória e, depois, os direitos têm de se conciliar”, reconhece, seja os direitos das pessoas com deficiência, da criança que pode nascer, dos avós da criança... “O não querer ser avó à força merece protecção da lei?”, interroga o jurista.
Julieta Sanches também aborda esse tema. “Sou uma pessoa com deficiência, quero ter um filho, não tenho capacidade para tratar dele. Do outro lado, está a família que diz: ‘Eu trato muito bem de ti mas não quero tratar de mais ninguém.’ Chocam-se aqui duas vontades.”
Mas há outra questão inquietante: um deficiente mental profundo, que não fala, que não entende o que é dito, como pode ser capaz de decidir num campo destes? “Há formas convencionais e não convencionais de a pessoa com deficiência expressar a sua vontade, não há só uma forma de comunicar”, sustenta a coordenadora do Observatório da Deficiência.
“A comunicação pode ser por intermédio de um ajudante, de uma pessoa que interpreta, que consegue ler os sinais daquela pessoa, que é, de alguma forma, a sua voz”, afirma Paula Pinto. “Em Espanha, quando ratificaram a Convenção, a primeira coisa que fizeram foi fazer formação nos tribunais sobre a Convenção e as suas implicações, receberam formação juízes e procuradores para estarem mais sensíveis ao artigo 12 da Convenção e às implicações que ele tem.”
Depois, é preciso dar às pessoas meios para elas exercerem os seus direitos. “No Canadá, encontrei um programa de ajuda pessoal, de assistentes pessoais, para o exercício da parentalidade por parte de pessoas com deficiência”, exemplifica.
Rui Nunes também concorda que, “na maioria dos casos, apesar de a capacidade estar diminuída, é sempre possível auscultar a pessoa com deficiência e respeitar a sua vontade devidamente informada e esclarecida”. Mas acha que hoje “os médicos estão muito mais sensibilizados para o imperativo ético que a obtenção de consentimento representa nas sociedades modernas e contemporâneas”.
Já Julieta Sanches acredita que é “utópico” achar que acontecerá sempre dessa forma. “Conheço um caso de uma pessoa com paralisia cerebral que teve uma criança, o sonho era ter uma criança. Tinha a parte motora bastante afectada, mas escolheu ter e a família apoiou. E está feliz e a família está feliz”, diz. “Mas temos casos de jovens que engravidaram sem ter condições para criar os filhos. Há famílias que têm condições, e a família alargada toma conta das crianças, e bem. E há outras crianças que têm mesmo de ser institucionalizadas. Se é isso que queremos para as nossas crianças... isto é um tema muito melindroso.” Com A.H. e R.M.