Marcelo dá “benefício da dúvida” ao Governo e deixa 35 horas sob vigilância
Primeiro-ministro assegura que o Governo está “100% empenhado” em garantir que não haverá aumento global das despesas com pessoal. Lei das 35 horas entra em vigor a 1 de Julho.
Apesar das questões políticas e jurídicas que o tema coloca, o Presidente da República decidiu dar o “benefício da dúvida” ao Governo e promulgou a lei que recupera a semana de 35 horas para os trabalhadores em funções públicas. Mas avisou que vai estar atento e, se houver um aumento das despesas por causa da medida, pedirá a intervenção do Tribunal Constitucional. Confrontado com os avisos de Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro garantiu que o seu executivo está “100% empenhado” em cumprir esse objectivo.
Numa nota divulgada na terça-feira à noite, o Presidente, enumera as dúvidas que o diploma, aprovado na Assembleia da República por toda a esquerda e pelo PAN, lhe coloca. No entanto optou por dar o “benefício da dúvida” ao Governo, tendo em conta que as 35 horas vigoraram até 2013, que se trata de uma promessa eleitoral e a existência na lei de uma norma transitória que impede o aumento das despesas com pessoal. É precisamente essa norma que Marcelo Rebelo de Sousa quer que o Governo cumpra rigorosamente, “sob pena de poder vir a enfrentar fiscalização sucessiva da constitucionalidade” da lei que entrará em vigor a 1 de Julho.
A resposta do executivo socialista não se fez esperar, com António Costa a garantir que o seu executivo está “100% empenhado” em garantir que não haverá aumento global das despesas com pessoal por causa da reposição das 35 horas. Em Nova Iorque, o ministro das Finanças, Mário Centeno, foi mais concreto e assegurou, nesta quarta-feira, que os custos com as 35 horas serão compensados com poupanças noutros sectores. “Vai ser necessário compensar os custos que sectorialmente possam estar envolvidos com a medida, com poupanças noutros sectores”, disse Mário Centeno, lembrando que o programa do Governo prevê que a medida seja implementada sem aumento dos custos globais com pessoal.
No início do ano, o Governo enviou um inquérito a todos os serviços e organismos para quantificar o impacto da redução da semana de trabalho de 40 para 35 horas, mas os resultados nunca foram divulgados. O único número revelado diz respeito ao Ministério da Saúde e aponta para a necessidade de mais 27 milhões de euros só para cobrir as despesas com a medida no segundo semestre do ano.
Nesta quarta-feira, o PÚBLICO voltou a instar o Ministério das Finanças a divulgar os resultados desse inquérito, mas não obteve resposta.
As dúvidas de Marcelo
O custo com a reposição das 35 horas é uma das principais dúvidas suscitadas por Marcelo Rebelo de Sousa. Na nota que acompanha a promulgação do diploma, o Presidente começa por colocar aquela que considera ser a questão “politicamente mais sensível”: a passagem das 40 para as 35 horas vai ou não aumentar a despesa pública, “num contexto em que tal é negativo e mesmo arriscado”?
O diploma, reconhece, tenta “tornear o problema” ao fazer depender novas despesas de autorização do Governo e “permitindo o diferimento da entrada em vigor nas situações de maior risco de acréscimo de despesas, sem limite de tempo”. Contudo “só o futuro confirmará se as normas preventivas são suficientes para impedir efeitos orçamentais que urge evitar”.
Há ainda questões jurídicas a ter em conta: se da lei resultar um aumento da despesa ficará em causa o artigo da Constituição que impede os partidos de apresentar diplomas que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas previstas no Orçamento do Estado. É em relação a este aspecto que Marcelo Rebelo de Sousa vai estar muito atento e do qual irá depender um eventual pedido de fiscalização sucessiva do diploma.
As dúvidas do Presidente estendem-se à existência de horários distintos entre o sector público e privado e dentro da própria administração pública (nomeadamente em relação aos trabalhadores com contrato individual ou com vínculos precários). Mas neste caso, o Presidente acaba por dar resposta às suas próprias interrogações, dizendo que o facto de haver congelamentos salariais e de carreira obrigatórios “desde 2009 e até 2020” pode justificar as diferenças entre público e privado e que há trabalhadores “não públicos” a fazer horários “idênticos ou semelhantes” às 35 horas.
Sindicatos concentram-se nos contratos individuais
Os sindicatos aplaudem a promulgação do diploma que põe fim “a um retrocesso civilizacional” decidido pelo anterior Governo em 2013. Mas com as 35 horas garantidas para os funcionários com contrato de trabalho em funções públicas, os sindicatos exigem agora que sejam criadas as condições para que a medida possa chegar aos trabalhadores do Estado com contrato individual de trabalho (CIT)
“Isto é um processo e, se é verdade que está resolvido para os contratos de trabalho em funções públicas, é urgente que se resolva também para os contratos individuais de trabalho”, desafiou José Abraão, dirigente da Federação dos Sindicatos da Administração Pública (Fesap).
Do lado da Frente Comum, Ana Avoila destaca que se trata de “uma boa notícia para os trabalhadores”. “Esperamos que corra tudo bem, até agora, tudo indica que sim, vamos a ver", frisou a sindicalista, referindo-se ao facto de estarem a decorrer negociações para alargar as 35 horas a todos os trabalhadores do Estado.
O sector da saúde é aquele onde o problema parece ter maior dimensão, porque haverá enfermeiros com contrato de trabalho em funções públicas que passarão a trabalhar 35 horas e outros com CIT, com 40 horas semanais.
O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (que faz parte da Frente Comum) tem já em curso a negociação com o Ministério da Saúde de um acordo colectivo de trabalho parcial e transitório para aplicar as 35 horas aos CIT. Os enfermeiros reuniram nesta quarta-feira com o ministério para fixar as matérias que devem ficar reguladas nesse acordo. O presidente do sindicato, José Carlos Martins, disse ao PÚBLICO que a expectativa é que as negociações fiquem fechadas a 20 de Junho, para que no início de Julho todos os enfermeiros – independentemente do vínculo – tenham as 35 horas.
Outros sindicatos, que representam os assistentes técnicos e operacionais, esperam fechar acordos semelhantes para que todos os trabalhadores destas carreiras também sejam abrangidos.
A semana de trabalho na administração pública foi fixada em 35 horas em 1988, durante um governo de Cavaco Silva, e foi alargada a todas as carreiras em 1998, com António Guterres. Em 2013, durante o programa da troika, o Governo de Passos Coelho/Paulo Portas decidiu aumentar o limite máximo de trabalho semanal no Estado para 40 horas.
A reposição das 35 horas era uma promessa do programa do actual Governo, mas desde que isso não implique um aumento global das despesas com pessoal. com Leonete Botelho