Governo entende que contratos com colégios não têm "base legal adequada"
Os contratos de associação celebrados em 2015 têm na base um diploma que o Executivo considera ser "ilegal". Estatuto do ensino particular foi aprovado por decreto-lei que não pode modificar uma lei anterior do Parlamento.
Os contratos de associação com colégios celebrados em 2015 têm na base um diploma que o actual Governo considera “ilegal”. É este o entendimento veiculado num documento do executivo a que o PÚBLICO teve acesso, em que se frisa que aqueles contratos, que custarão este ano 139 milhões de euros, não têm uma “base legal adequada”. Esta interpretação é contestada pela Associação de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo (Aeep), que exorta o Governo a cumprir o que foi acordado em 2015.
Em causa está o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo aprovado em 2013 e que, segundo o Governo, é “ilegal” na parte em que deixou de assinalar que o financiamento do Estado aos colégios está dependente da oferta pública existente nas zonas em que estão implantados, um princípio que esteve na base dos contratos de associação. Estes acordos foram inicialmente criados nos anos 80 para garantir o ensino gratuito nas zonas do país onde não existia oferta pública, o que foi feito através do financiamento do Estado aos colégios implantados nessas áreas. No novo estatuto do ensino particular aprovado pelo Governo do PSD
CDS estabelece-se, pelo contrário, que “os contratos de associação integram a rede de oferta pública de ensino, fazendo parte das opções oferecidas às famílias no âmbito da sua liberdade de escolha no ensino”.
Para o Governo, este princípio, que foi replicado na portaria do ministério de Nuno Crato que, em 2015, definiu as regras e o montante dos contratos que actualmente estão em vigor com 81 colégios, contraria o que se encontra estipulado na Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo.
Neste diploma, datado de 1979, refere-se que a celebração de acordos entre o Estado e as escolas particulares obedece, entre outras, às seguintes modalidades: “contratos com estabelecimentos que se localizem em áreas carenciadas da rede pública escolar”, mas também com colégios que, “integrando-se nos objectivos do Sistema Nacional de Educação, se encontrem localizados em áreas suficientemente equipadas de estabelecimentos públicos”, devendo ser dada “prioridade” aos primeiros.
Trata-se, portanto, de um problema de hierarquia de leis. Como o estatuto do ensino particular foi aprovado por decreto-lei, não pode modificar uma lei, que lhe é anterior, já que esta “constitui reserva legislativa absoluta da Assembleia da República” que a votou. Por outro lado, acrescenta-se, o diploma de 2013 também não está conforme com a Lei de Bases do Sistema Educativo, que igualmente só pode ser alterada pelo Parlamento.
Por esta razão, considera-se que “o requisito da carência da rede pública continua juridicamente em vigor”. Apesar da “desconformidade legal” de que aparentemente enfermam, o Governo garante que os contratos assinados em 2015, com um prazo de vigência de três anos, “serão integralmente executados”, mas deixa um aviso: ao contrário do que sucedeu no ano passado, os acordos que “venham a ser celebrados no futuro” terão como base a “verificação da carência da rede pública escolar”, o que neste momento apenas acontece “em casos pontuais”, frisa.
Esta sexta-feira à noite, no Porto, o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho alertou que os colégios poderão levar o Estado a tribunal devido ao entendimento “retrógrado” do actual Governo que põe “em causa as próprias decisões que [o Estado] tomou em concurso público”.
Escola pública "garante igualdade"
Embora sem se referir directamente à contestação dos colégios, o actual primeiro-ministro, António Costa, defendeu também esta sexta-feira, em Ermesinde, que é na escola pública que é fundamental concentrar recursos porque “é a escola de todos, a que garante a igualdade de oportunidades a todos”.
Dos 81 colégios com contratos de associação, pelo menos 22 estão em concorrência directa com escolas públicas que estão subocupadas. Outros 15 receberam alunos que residem fora das área geográficas em que estão implantados, o que também passará a ser proibido por determinação do despacho que estabelece as normas para as matrículas, aprovado no mês passado pelo Ministério da Educação. No conjunto, estas restrições irão afectar 46% dos estabelecimentos com contratos de associação.
Questionado sobre a interpretação que o Governo faz de todo este caso, o director executivo da Associação de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo, Rodrigo Queirós e Melo, é taxativo: “Não existe qualquer norma sobre os contratos de associação na Lei de Bases do Sistema Educativo”. O PÚBLICO também não a encontrou.
Quanto à Lei de Bases de Ensino Particular e Cooperativo, Queirós e Melo frisa que esta apenas “abre possibilidades”, uma vez que “não cria as diversas formas de contratos” com o Estado actualmente existentes, “nem estabelece os correspondentes regimes”.
Factura duplicada
“Neste momento, o que pedimos é que o Estado cumpra os contratos que foram celebrados de boa-fé há menos de um ano”, assinala este responsável, acrescentando que no final do seu prazo de vigência “a situação poderá e será certamente reequacionada pelo Governo”. Só que este “não é o tempo” para que tal aconteça, alerta.
Na origem do diferendo entre a Aeep e o Governo estão não só as novas normas de matrícula mas também interpretações diferentes do âmbito dos contratos celebrados em 2015. O executivo entende que não está obrigado a aprovar mais turmas para além do número que foi estipulado naqueles acordos. Por exemplo, se ficou definido o apoio a 30 turmas, tal significa que o financiamento será para este número de turmas “entre 1 de Setembro de 2015 e 31 de Agosto de 2018” e não o apoio a outras tantas “em cada um dos anos”, explicita.
O ponto de vista da Aeep é outro. Defende que o Estado está obrigado a garantir financiamento, durante esses anos, a novas turmas de início de ciclo, nos totais que ficaram acordados em 2015 (650). Esta é questão que estará no centro da próxima reunião entre a Aeep e a secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, que está marcada para o próximo dia 11.
Esta sexta-feira, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, defendeu no Parlamento que a redução dos contratos de associação é uma forma de “não duplicar a factura paga pelo contribuinte”. “O respeito pelo Orçamento do Estado exige-nos que o usemos no que é necessário e não no redundante”, frisou, para justificar a decisão do ministério em não autorizar novos financiamentos em zonas onde existam escolas públicas.
Ao mesmo tempo decorria um protesto organizado pelos colégios. Em Coimbra, três reuniram a comunidade escolar para contestar a posição do Governo. Entre pais, alunos, professores e funcionários, terão participado na iniciativa mais de 1500 pessoas do Colégio de São Teotónio e do Colégio Rainha Santa.
Horas antes, em Braga, também António Costa tinha à sua espera algumas centenas de pais, professores e alunos de colégios com contratos de associação, que organizaram ontem vários “cordões humanos” em defesa do sector. À Lusa, a presidente da Associação de Pais do Externato Infante D. Henrique, em Braga, indicou que o primeiro-ministro, que se reuniu com alguns dos representantes do protesto, se mostrou “disponível para tentar perceber o que acontece com cada escola com contrato de associação, caso a caso”. com Camilo Soldado