Na Londres cosmopolita um mayor muçulmano ainda pode incomodar?
Sadiq Khan é o favorito das sondagens para vencer eleição e tirar aos tories o bastião londrino. Será o acto final de uma campanha manchada por insinuações e acusações de racismo.
A vida de Sadiq Khan é uma história de superação. Ele é o filho de imigrantes paquistaneses — o pai condutor de autocarros, a mãe costureira – que se fez advogado, deputado, secretário de Estado e que poderá agora assumir o governo de uma das grandes metrópoles europeias. O candidato trabalhista a mayor de Londres é também muçulmano, mas o que à partida seria um pormenor na multiétnica e liberal capital britânica tornou-se o “elefante na sala” desta campanha, muito por causa de uma estratégia sem tréguas do Partido Conservador, apostado em não perder a cidade que durante oito anos foi de Boris Johnson.
“Devo dizer que estou preocupado com o candidato do Labour”, disse David Cameron no Parlamento a 21 de Abril, numa sessão que ficará para a história como o dia em que o primeiro-ministro britânico foi apelidado de “racista” por deputados da oposição. Repetindo insinuações lançadas pela campanha de Zac Goldsmith, o candidato conservador à autarquia de Londres, Cameron acusou Khan de ter dado “espaço e cobertura” a extremistas islâmicos com quem apareceu várias vezes em público, incluindo o imã Suliman Gani, que descreveu como “apoiante do Estado Islâmico”.
A acusação fez ricochete quando se soube que Gani apoiou nas últimas legislativas o candidato conservador ao círculo pelo qual Khan foi eleito. Isso não impediu os tories de continuarem a usá-la como principal linha de ataque contra o trabalhista, tido como claro favorito à vitória nas eleições de hoje – tem nas sondagens uma vantagem superior a dez pontos percentuais sobre Goldsmith, filho de um milionário e figura do jet-set londrino.
Khan repudiou a estratégia “suja” e “desesperada” dos adversários, dizendo que nas vezes em que partilhou o palco com extremistas, em debates ou conferências, deixou sempre claro que considerava “os seus pontos de vistas abjectos”. Mas perante o furor mediático viu-se obrigado a reafirmar as suas credenciais de muçulmano moderado: apesar de devoto (não bebe álcool), votou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que lhe valeu ameaças de morte, e há muito que classifica o extremismo “como um cancro” – em 2005 a revista conservadora Spectator elegeu-o como melhor novo deputado do ano “pela clareza” com que repudiou os ataques de Londres.
“Khan é claramente um muçulmano moderno e progressista. Se os adversários se aventuram demasiado nesse terreno [o da religião], arriscam-se a que isso os atinja”, disse à AFP Tony Travers, professor da London School of Economics e director do centro de pesquisas sobre Londres.
De Tooting a Westminster
Afinal, entre os mais de oito milhões de habitantes da capital, duas em cada oito pessoas professam o islamismo e a população branca representa menos de metade dos habitantes. A eleição daquele que pode vir a ser o primeiro muçulmano à frente de uma grande cidade ocidental seria, por isso, um sinal forte num momento em que a xenofobia e os populismos crescem na Europa.
Criado em Tooting, bairro popular do Sul de Londres, Khan não faz da sua fé uma bandeira. “Quero ser o mayor de todos os londrinos, de todas as confissões, dos milionários, dos multimilionários, dos condutores de autocarro e dos estudantes de Medicina”, disse ao Daily Telegraph. O seu emblema é o da superação, a “história de sonho” que diz só ser possível numa cidade como Londres. Nascido meses depois de os pais chegarem a Inglaterra, cresceu numa família de oito irmãos que morava num apartamento social de três quartos e frequentou a escola mais mal afamada de Tooting. O pai trabalhava turnos seguidos como condutor de autocarro e a mãe completava o rendimento da família costurando vestidos. Mas todos os filhos estudaram na universidade e Sadiq Khan estudou Direito, aconselhado por um professor que lhe notou a veia argumentativa.
Sem nunca deixar Tooting, especializou-se em direitos humanos e foi presidente da Liberty, ONG conhecida pela defesa de vítimas de abusos policiais. Em 2005 trocou o que prometia ser uma carreira lucrativa pela política e, três anos depois de ter sido eleito deputado, chegou a secretário de Estado – foi apenas o segundo muçulmano a ocupar um lugar no Governo britânico. Conhecido pela combatividade, foi estratego da campanha de Ed Miliband na corrida à liderança do Labour e voltou a desafiar as probabilidades em Setembro, ao vencer a votação para candidato do partido a mayor, contra nomes mais fortes.
“Posso dizer com honestidade que aquilo que ele conseguiu até agora, vindo de onde vem, é impressionante. Vem de uma genuína base de imigrantes das classes operárias e, se Londres o eleger como primeiro mayor muçulmano, isso será uma história extraordinária de dimensão global, um imenso tributo ao espírito multicultural de Londres”, disse ao Guardian o deputado David Lammy, que como Khan é filho de imigrantes mas foi batido por ele na corrida a Londres.
Racismo encapotado
Um percurso que não podia contrastar mais com o de Goldsmith, filho do magnata James Goldsmith, estudante em Eton e que, antes de ser deputado, foi jornalista na Ecologist, revista fundada por um tio”. E se os dois não têm projectos muito diferentes para a capital – querem ambos mais investimento na habitação e nos transportes, os dois grandes problemas que assombram os londrinos –, o candidato dos tories notabilizou-se pelas gaffes, como quando foi incapaz de identificar uma estação de metro ou localizar o Museu de Londres.
Foi neste contexto que o quartel-general de Goldsmith, onde pontua o muito polémico estratego australiano Lynton Crosby, começou a lançar insinuações contra Khan. Em nenhum momento, ele foi acusado de ser um extremista islâmico, mas por várias vezes as suas ideias foram descritas como “radicais” – ainda que em matéria política ou económica – e se insinuou que ele “não é digno de confiança”.
O exemplo flagrante desta táctica foi a carta que Goldsmith publicou no último Mail on Sunday em que avisou que Londres está “à beira da catástrofe”, dizendo que a eleição de Khan abre a porta ao “socialismo agressivo” defendido pelo líder trabalhista, Jeremy Corbin. Alertava ainda para o risco de entregar o controlo da Scotland Yard a um candidato “que, intencionalmente ou não, legitimou repetidamente a visão dos extremistas”. O artigo recordava que Khan criticou o envolvimento britânico nas guerras do Médio Oriente, mas qualquer subtileza desfaz-se perante a fotografia escolhida para o artigo: o autocarro esventrado por uma das explosões dos atentados de 2005.
“Este não é o Zac Goldsmith que eu conheço”, escreveu no Twitter a ex-ministra Trita Warsi, a única nos tories a insurgir-se contra a campanha negativa. Goldsmith respondeu que não foi ele quem escolheu a fotografia e afirmou que nunca trouxe a religião do adversário para o debate: “Khan está a invocar islamofobia apenas para evitar responder a perguntas.”
“Tácticas divisionistas”
Mas foi a sua campanha que, em meados de Março, enviou panfletos aos eleitores de origem indiana e tâmil (maioritariamente hindus), alertando-os para as “políticas radicais” defendidas pelo trabalhista. Tony Travers disse à Foreign Policy que, numa cidade tão diversa como Londres, é normal os candidatos adoptarem mensagens distintas para grupos diferentes. Mas considerou inédita a tentativa de colocar uns contra os outros. “É uma táctica divisionista e não tenho a certeza que seja efectiva. Há indicadores de que o preconceito racial está a aumentar no país, mas não em Londres”, explicou.
No entanto, uma sondagem realizada no ano passado pela rádio LBC concluiu que um em cada três londrinos se sentia “desconfortável” com a ideia de ter um muçulmano como mayor. E os analistas sublinham que a campanha de Goldsmith não está a falar para a cidade multiétnica, mas para o eleitorado maioritariamente branco dos subúrbios operários e dos bairros privilegiados que rodeiam a cidade. “Há a possibilidade de haver pessoas dissuadidas por este racismo encapotado, pessoas que não assumem que não vão votar em Khan, mas que nas urnas vão vacilar”, disse à Reuters Anthony Wells, do instituto de sondagens YouGov.
As casas de apostas colocam as hipóteses de vitória de Khan nos 90%, mas o Politics.uk diz que na sede trabalhista se teme a repetição da inesperada hecatombe das últimas legislativas e o efeito real de uma campanha que “lançou a dúvida sobre o quão tolerante é a cidade que se intitula ‘capital do mundo’”, como escreveu Ian Dunt, o director daquele site, na Foreign Policy. “Se nem Londres pode ter um candidato muçulmano sem que a eleição se enrede na discussão racial, que esperança há então para o resto do mundo?”