Governo quer respaldo da PGR para rescindir contratos com Sousa Cintra por incumprimento
Pedido de parecer ao conselho consultivo da PGR questiona validade do despacho com que Moreira da Silva atribuiu concessões de petróleo à empresa de Sousa Cintra.
O Governo já tem argumentos para rescindir os contratos de concessão com a Portfuel por violação de deveres contratuais, mas quer que a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirme que estas falhas estão devidamente fundamentadas do ponto de vista legal para quebrar os contratos sem correr o risco de ter de vir a pagar indemnizações. O PÚBLICO sabe que esta é uma das questões levantadas pelo secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, num pedido de parecer enviado este mês ao conselho consultivo da PGR.
A sociedade de José Sousa Cintra tem, desde Setembro, a concessão de direitos de prospecção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo em terra (onshore) que atravessa quase todo o Algarve. A polémica sobre os contratos atingiu novas proporções no últimos dias, mas o empresário diz “não conseguir compreender” as razões de tanto ruído.
Em declarações ao PÚBLICO, Sousa Cintra atribuiu a contestação “a gente sem escrúpulos, que quer instrumentalizar as pessoas” e assegurou que os contratos “são para manter”. A Portfuel, empresa deficitária, que foi constituída em 2013, está a “cumprir todas as obrigações, com todo o rigor”, assegurou.
Aos olhos do Governo, segundo as informações recolhidas pelo PÚBLICO, a empresa não só está já em incumprimento (porque não entregou a apólice de seguro obrigatória, nem entregou atempadamente a caução que lhe era exigida) como entende que a sua candidatura foi aceite sem cumprir os requisitos legais. Por isso, Seguro Sanches considera que há margem para determinar a nulidade ou anulabilidade dos contratos e questionou nesse sentido os serviços liderados pela procuradora-geral Joana Marques Vidal. Pode o despacho (de Junho) em que o anterior ministro do Ambiente e da Energia, Jorge Moreira da Silva, autoriza as assinaturas dos contratos ser declarado nulo ou anulado? Se assim for, pode essa nulidade ou anulabilidade repercutir-se nos actos subsequentes, ou seja, nas minutas e contratos de concessão assinados com a Portfuel em Setembro de 2015?
As dúvidas são do Governo, o seu esclarecimento caberá agora ao conselho consultivo da PGR, mas o relógio está a contar. A nulidade dos contratos celebrados com Sousa Cintra – que seria, para o Estado, a via mais fácil para resolver o assunto – tem que ser determinada até ao início de Junho, por correr prazos legais, por isso, o pedido de parecer tem carácter de urgência.
Pedido já no Parlamento
O PÚBLICO apurou que este pedido foi já enviado ao Parlamento, em resposta aos deputados do PS, PCP e Bloco de Esquerda, depois de, na quinta-feira, o antigo ministro do Ambiente e da Energia, Jorge Moreira da Silva, e o antigo secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, terem sido ouvidos numa comissão conjunta de Economia e Ambiente.
Aos parlamentares, os ex-governantes salientaram que o actual contrato apenas garante a Sousa Cintra as autorizações para a pesquisa e prospecção. A Portfuel "não pode fazer nada no terreno sem autorização e só ao fim de oito anos é que o Estado vai ter de decidir se quer passar para a fase de exploração", caso seja encontrado petróleo, disse Moreira da Silva. "A concessão não dá licença para produzir, nem explorar", sublinhou Artur Trindade. Neste momento Sousa Cintra apenas pode "fazer estudos que não tenham qualquer interferência com o solo" e quando quiser passar à fase de perfuração terá de iniciar "processos de licenciamento que incluem consultas públicas e avaliações de impacto ambiental".
Se não cumprir os requisitos a que está obrigado, “perde o contrato, perde a caução e ainda indemniza o Estado”, acrescentou o ex-secretário de Estado, frisando que a obrigação do Governo e da ENMC é a de “continuar a escrutinar” a Portfuel.
Na mesma linha, Moreira da Silva comentou a decisão da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) de travar um furo de água de outra sociedade de Sousa Cintra, a Domus Verde, por suspeitar que pudesse estar ligado à pesquisa petrolífera. “Foi suspenso e muito bem”, disse o ex-ministro.
Para o actual executivo é legítimo questionar se, por se tratar de actividades em áreas que integram a Reserva Ecológica Nacional, não deveria ter sido exigida previamente uma avaliação de impacto ambiental antes da entrega das concessões à Portfuel, em vez de a avaliação ambiental ficar condicionada a qualquer actividade que utilize métodos não convencionais de prospecção, como a fracturação hidráulica (fracking), cuja possibilidade a empresa admite nas candidaturas.
Além disso, a secretaria de Estado da Energia também parece ter a certeza que as concessões foram atribuídas a uma empresa que não fez prova de idoneidade económico-financeira e técnica.
A lei (com 22 anos) que enquadra estas actividades exige como requisitos obrigatórios cumulativos aos candidatos a apresentação de garantias bancárias apropriadas, dos balanços referentes aos últimos três anos de actividade e de outros elementos demonstrativos da experiência anterior no sector. Ora, destes três requisitos queixa-se o Governo que a Portfuel só entregou as garantias bancárias (através de duas declarações da Caixa Económica Montepio Geral, no valor de 2,3 milhões de euros), estando a sua competência técnica por comprovar e as contas dos últimos três anos por entregar.
Entre quem conhece a lei há quem advirta que ela não é assim tão clara, não obrigando, por exemplo, que as empresas candidatas às concessões tenham de ter mais de três anos de existência e que, por isso, não lhes é exigível que apresentem algo de que não dispõem.
Mas o actual executivo manifesta a dúvida no pedido de parecer, onde também questiona a ausência de competências da Portfuel – Petróleo e Gás de Portugal para as actividades concessionadas.
Este foi um dos temas abordados desde logo pela Direcção-geral de Energia e Geologia (DGEG) nas comunicações com a Portfuel, que começaram formalmente em Novembro de 2014. Às áreas de Tavira e Aljezur chamou Sousa Cintra Trevo e Figo na primeira candidatura que submeteu à DGEG (que até Abril do ano passado tinha entre as suas competências a área petrolífera).
Em Dezembro desse ano, depois de uma primeira rectificação às candidaturas, a Portfuel (que chegou a manifestar interesse em concessões na bacia Lusitânica, entretanto atribuídas à Australis) foi informada pela DGEG que tinha de reformular os planos de trabalho e a equipa técnica. Assim, em Janeiro de 2015, a Portfuel apresentou garantias bancárias, alterou os planos de trabalho e fez prova de reforço da equipa técnica.
Estado "não pode ser preconceituoso"
Em Março, considerando que as candidaturas cumpriam os requisitos e que a equipa tinha novos consultores técnicos, a DGEG propôs ao gabinete de Artur Trindade a sua aprovação. Ainda assim, colocou algumas reservas, notando que os planos de trabalho apresentados não se enquadravam na metodologia habitualmente utilizada a nível internacional (o programa de trabalhos da Portfuel parecia ser insuficiente para avaliar o potencial petrolífero das áreas a pesquisar e os orçamentos previstos também se afiguravam reduzidos).
Depois, o processo passou para Moreira da Silva, que assinou o despacho de autorização em Junho, e os contratos viriam a ser assinados em Setembro, a poucos dias das eleições legislativas. Em declarações ao PÚBLICO, Moreira da Silva considerou “inaceitável confundir [este processo] com calendários eleitorais”. Além disso, notou que a própria Portfuel “estava a contestar legalmente a morosidade dos prazos” do Governo, uma vez que o primeiro requerimento foi entregue em Novembro de 2014 e a lei prevê um “prazo máximo de 90 dias para a negociação entre a DGEG e o promotor” a contar dessa data. “A minha não decisão poderia ser prejudicial ao Estado face à ultrapassagem dos prazos legais”, justificou.
Criticando também quem defende que “não se deveria ter autorizado a pesquisa porque depois será mais difícil travar produção se o petróleo existir”, o vice-presidente do PSD sustentou que “o país tem o direito de conhecer os seus recursos”. Coisa diferente será “a decisão sobre se quer avançar ou não”, se houver descobertas.
Os contratos com Sousa Cintra em nada diferem “dos de outras áreas”, garantiu o ex-governante, dizendo que “a diferença está em tratar-se de uma pessoa controversa para a opinião pública”. Mas o Estado, diz Moreira da Silva, “não pode ser preconceituoso”.
Quando esteve no Parlamento, o ex-ministro também criticou os "interesses" que estão a "instrumentalizar as emoções da população [algarvia] tendo por base a má-fé" e acusou a esquerda de querer fazer “tiro ao alvo ao primeiro vice-presidente do PSD”.
Empresa já foi notificada
Neste momento em que aguarda a clarificação da PGR, o Governo tem também um parecer jurídico pedido pela Entidade Nacional do Mercado dos Combustíveis (ENMC), que herdou as competências da DGEG e assinou os contratos com a Portfuel, que sustenta a existência de uma situação actual de violação grave dos deveres contratuais pelo facto de a empresa não ter apresentado a apólice de seguro. Essa é uma das condições que “justificam a rescisão do contrato de concessão”, como se lê nos contratos assinados para Aljezur e Tavira.
Até à data, o empresário terá entregado uma declaração da Lusitânia Seguros (do grupo Montepio) de subscrição de um seguro, não a apólice. A este argumento juntam-se outras falhas: a Portfuel entregou fora de prazo (e em moldes desconformes com o contrato) as cauções, assim como os planos de trabalho orçamentados para as duas concessões. O PÚBLICO apurou que a empresa já foi notificada pela ENMC de que o Estado pondera rescindir os contratos de concessão das áreas de Tavira e Aljezur e que os argumentos apresentados pela empresa em audiência prévia não foram suficientes para anular os fundamentos da decisão. Sousa Cintra escusou-se a confirmar estes contactos ao PÚBLICO e assegurou que a Portfuel “não falhou com nada”. Com Leonete Botelho