Jornalista holandesa detida na Turquia por insultos a Erdogan
São jornalistas, cartoonistas, intelectuais, donas de casa e até ex-misses - em 20 meses de presidência Erdogan, a justiça turca abriu quase dois mil processos contra pessoas que criticaram o Presidente.
Uma jornalista holandesa a viver na Turquia foi detida este domingo durante várias horas por ter publicado, num jornal e no Twitter, uma análise crítica sobre a política de repressão da liberdade de expressão de Recep Erdogan, que foi considerada um insulto ao Presidente. "Polícia à porta. Não estou a brincar", anunciou no Twitter a jornalista, que foi levada para a esquadra de Kuadasi (a cidade turística na zona ocidental da Turquia onde vive), onde foi interrogada antes de ser libertada.
O caso, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros holandês disse imediatamente estar a seguir ao pormenor, adensou a crise diplomática entre os governos de Amesterdão e de Ancara. E soma mais um nome à longa lista de jornalistas e cidadãos que o Governo turco acusa de insultarem o Presidente — em 20 meses de presidência Erdogan, quase duas mil pessoas foram acusadas de terem cometido este crime, tendo sido abertos processos judiciais.
Foi sobre a crise diplomática Holanda-Turquia que Ebru Umar - que tem origem turca e é conhecida pelo seu ateísmo e feminismo - escreveu um texto publicado no jornal Metro holandês. Tecia críticas ao Presidente, que os críticos acusam de estar a acabar com a liberdade de expressão e de imprensa. A jornalista publicou excertos no Twitter.
O diferendo entre os dois países começou na semana passada, quando os jornais holandeses noticiaram que o consulado turco em Roterdão pedira às organizações turcas na Holanda para lhe reencaminharem todas as mensagens, de email ou outras, que recebessem com algum tipo de insultos a Erdogan ou à Turquia.
O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, anunciou que pedira explicações oficiais ao Governo de Ancara. Num primeiro momento, a embaixada turca na Holanda recusou justificar-se sobre o pedido do consulado de Roterdão. Depois, explicou que a mensagem tinha “uma infeliz escolha de palavras” e, por isso, foi mal interpretada — só queriam ser informados sobre mensagens de ódio ou racistas.
O Governo de Amesterdão quis saber quais as intenções da Turquia, o que pretendia fazer com a informação. Há escassas duas semanas, ficou a saber-se que a presidência e o governo turco estão atentos à legislação dos outros países e que não deixam passar em branco criticas ou insultos ao Presidente Erdogan — no dia 15, a chanceler alemã Angela Merkel aprovou o pedido de Ancara para ser aberto um processo judicial na Alemanha contra um humorista, Jan Böhmerman. Num programa de televisão, Böhmerman acusou Erdogan de autoritarismo e num poema cantado referiu-se ao Presidente islamo-conservador turco e a práticas sexuais de pedofilia e zoofilia. O processo contra o humorista está em apreciação na justiça alemã, que ainda não decidiu se a queixa avança ou é arquivada — entretanto, a revista Spectator abriu o concurso President Erdogan Offensive Poetry Competition e oferece um prémio de mil euros ao melhor classificado.
A consequência do artigo de Umar revela, mais uma vez, a intransigência do regime islamo-conservador turco perante as críticas, sejam feitas internamente ou no estrangeiro. A sustentar esta opção, está um artigo do Código Penal turco, o 301, que começou a ser aplicado de forma muito lata - diz que é ilegal insultar a Turquia, a nação turca ou as instituições governativas; o crime é punível com penas até quatro anos de prisão. Numa versão anterior, o artigo criminalizava apenas o insulto à “essência turca”, mas Erdogan, quando ainda era primeiro-ministro, alterou-o quando adoptou um pacote de medidas destinado a harmonizar as leis turca e europeia, no âmbito da possível abertura de negociações para a adesão do país à União Europeia.
Enquanto foi primeiro-ministro, o artigo quase não foi invocado. Assim que se tornou Presidente, os casos começaram a surgir — e já vão quase em dois mil. O número não é uma estimativa. É concreto. Foi dado no início de Março pelo responsável da Justiça, Bekir Bozdag, que no Parlamento disse que o seu ministério tinha avançado com 1845 casos judiciais por insultos ao Presidente Erdogan.
Pelas suas palavras, é o próprio ministro quem avalia cada um destes processos. “Nem consigo ler os insultos que são feitos ao nosso Presidente, começo logo a corar. Isto é vergonhoso, não é liberdade de expressão”, disse Bozdag, que é membro do partido islamista de Erdogan, o AKP.
Há jornalistas, cartoonistas, intelectuais, donas de casas, menores de idade, ex-futebolistas e até uma antiga Miss Turquia entre os acusados.
“Os líderes turcos costumavam perseguir os jornalistas por causa das suas colunas e textos”, disse à Bloomberg Susan Corke, directora para a Euroásia na organização de defesa dos jornalistas Freedom House, com sede em Washington (EUA).”Agora, com as redes sociais, o Presidente Erdogan e outros líderes turcos passaram a atacar toda a sociedade”.
No ano passado, num caso muito mediatizado, o Ministério Público pediu quatro anos de prisão para a modelo Merve Buyuksarac, que foi Miss Turquia em 2006, por ter publicado no Instagram uma fotografia com um poema satírico sobre Erdogan, segundo a agência Anadolu. Um rapaz de 13 anos foi detido após uma denuncia anónima que o acusava de insultar o Presidente no Facebook — a polícia fez uma rusga à casa do menor. Outros dois menores, de 12 e 13 anos, foram detidos e acusados de insulto ao Presidente por terem rasgado um cartaz com a cara do Presidente. E a antiga estrela turca de futebol Hakan Sukur está a ser julgado por insultos a Erdogan no Twitter — no tribunal, Sukur explicou que o que publicou não tinha a ver com o Presidente, mas a acusação disse que estavam “claramente relacionados”, segundo a agência Dogan.
Até há um caso do marido que denunciou a mulher. Ali D., um habitante de Esmirna de 40 anos, foi à polícia com uma gravação em que se ouve a mulher a dizer mal do Presidente. Ao jornal Yeni Safak explicou por que o fez: “O nosso Presidente é uma boa pessoa e faz coisas boas pela Turquia. Fartei-me de a avisar. Nem que fosse o meu pai a proferir os insultos, não lhe perdoaria”.