A livraria do coração do Porto, que muitos consideram uma das mais bonitas do mundo, está a mudar. Pelo menos, está diferente. Afinal, 110 anos de história dão muito peso às paredes do nº 144 da Rua das Carmelitas, bem perto da Torre dos Clérigos. Desgastada pelo tempo, a velhinha livraria encontra-se agora em fase de restauro.

Nem o frenesim da obra, o andaime e barreiras no exterior, no qual está um elevador com um jovem a pintar um grafiti ultra realista onde se deveria ver uma fachada antiga, nem o andaime que se vê da porta no interior da livraria, nem a fila que já vai longa para quem quer para entrar… nada demove os turistas. E à medida que as horas passam, mais gente chega. Pouco depois das 11h já se contam-se mais de 100 pessoas à espera de entrar.

Segundo a Administração, depois de a livraria ter estado fechada durante dois dias para o início das obras, quando reabriu, na quinta-feira, recebeu mais de 2 mil visitantes.

À porta, com um sorriso e em várias línguas diferentes, Lourenço vai “picando” bilhetes e distribuindo um folheto no qual se explica o porquê de a Lello estar diferente. Aí fala-se do mural que a cobre ou o porquê de não se ver o vitral. Face à breve explicação do colaborador da livraria, ouve-se, em diversas línguas e inclusive em português: “que bem!”. Todos elogiaram o restauro da livraria e apoiam a conservação deste pequenino pedaço de grande património.

Mais de um século depois, o seu vitral interior está a ser limpo pela primeira vez. A cobertura totalmente renovada e a sua fachada, no exterior, está também a ganhar nova vida, em dois sentidos: o edifício está a ser integralmente restaurada, para que lhe sejam devolvidas as cores originais, e enquanto a beleza do neogótico não pode ser admirada de novo, a cara do estreito edifício respira arte urbana moderna, estando a ser executado um painel de street art pelo artista portuense Mr. Dheo, que em parceria com o colega Pariz One, pintam, até ao próximo domingo, uma combinação de elementos centrados na livraria e na literatura.  

"Renovando a fachada, era obrigatória a colocação de uma lona. Como a Lello é considerada Edifício de Interesse Nacional, era obrigatória a colocação de uma lona com a fotografia da fachada do edifício. O Dr. Pedro Pinto, nosso administrador, teve a ideia de aproveitar esta situação para fazer uma intervenção artística, para também oferecer à cidade este resultado, que é a visão de dois artistas de arte urbana sobre esta livraria”, explicou ao PÚBLICO Marta Teixeira, assessora de Comunicação da Lello.

Lello, literatura e o Porto
Mr. Dheo, depois de manter um diálogo com um grupo de 80 estudantes que tinham acabado de visitar a livraria, conversava agora com um casal de idosos, que se encontravam à frente da livraria a apreciar a obra, a quem explicava o sentido da mesma. Ao PÚBLICO disse que foi “com muito orgulho e entusiasmo, tendo em conta tudo aquilo que esta livraria significa para o Porto, para Portugal e para o mundo” que aceitou o convite para dar uma “nova cara” temporária à Lello.

Quanto ao conceito, Mr. Dheo diz que a inspiração foi procurada em três pilares: “acima de tudo, na história da Lello, a livraria em si e a relação que tem com a cidade, sendo que o principal tema é a literatura. Na parte central, focamo-nos nesta: temos os livros antigos empilhados, uma caveira que se liga a grande parte das obras, e a vela, que liga àquele ambiente do escritor antigo e como fundo fomos buscar um clássico da Lello que é o vitral. Tentamos passar uma imagem renovada da Lello, respeitando tudo aquilo que é importante para eles”.

Segundo este artista, o que a Lello fez, com esta ideia, foi “uma forma inteligente de aproveitar o talento local dos artistas, dando-lhes exposição, até porque vivemos numa cidade onde, durante muitos anos, os artistas urbanos não tiveram expressão". As críticas à anterior gestão camarária são amargas: "Tivemos uma autarquia que era avessa à arte urbana e os artistas aqui não tinham forma de se expressar. Eu tive de correr mundo, pintar em 40 e tal cidades antes de ter um mural no Porto! Neste contexto, se temos a oportunidade de criar um mural, ao vivo, onde as pessoas podem assistir à sua criação, e se pode aproveitar o talento dos jovens artistas que temos cá, que estudam e têm formação, não são vândalos, como muita gente pensa, na minha opinião é ouro sobre azul!”.

No exterior, todos reparam que a fachada não está lá, mas não criticam. Pelo contrário. Munidos de máquinas fotográficas e telemóveis, vão registando a evolução da obra enquanto comentam a sinfonia de cor presente através da imitação do vitral que Pariz One pinta, ou o ultra-realismo que Mr. Dheo acaba de imprimir no quadro central, já delimitado e pintado.

Mesmo com as obras, o valor dos vouchers manteve-se inalterado. Sim, voucher e não “bilhete”, pois o preço pago para entrar na livraria é inteiramente dedutível na compra de livros da biblioteca. Como disse Marta Teixeira, “a administração está a investir na conservação da livraria. É um compromisso que tem com a cidade que é o de garantir as melhores condições ao espaço e o preço da entrada é reinvestido na conservação deste espaço”.

Lá dentro, dezenas de pessoas movimentam-se, tiram fotos, compram livros, e quase que nem reparam que ali está um andaime. O impacto da estrutura colocada para a remoção do vitral que cobre todo o centro da livraria é mínimo. Só alguns relatam a falta que sentem do vitral.

Este restauro é uma das iniciativas promovidas pela Lello pela comemoração dos seus 110 anos de existência. Dar uma “cara lavada” à livraria e “melhores condições para os visitantes” era essencial. Outras iniciativas ainda decorrerão no âmbito destas comemorações. Em cooperação com as Tintas Cin, a Lello lançou aos seus visitantes o desafio de enviarem uma palavra que descrevesse a sua passagem pela livraria. Com um elevado grau de participação, aproveitando todas essas palavras, vai ser pintada, a partir da próxima sexta-feira e inaugurada no sábado, se as condições climatéricas o permitirem, uma passadeira de palavras, que atravessará de um lado ao outro o passeio e a Rua das Carmelitas. São 110 anos de história a serem reinventados.

Texto editado por Ana Fernandes