Ministro da Cultura ameaça dar “bofetadas” a colunistas do PÚBLICO
"Peço desculpa se os assustei", diz João Soares. Augusto M. Seabra considera o pedido uma "semi-retractação" após o "disparate monstruoso" que foi o post que o visou e a Vasco Pulido Valente.
Bofetadas, desculpas e Facebook: uma quinta-feira de intensa actividade política, com o Conselho de Ministros pela manhã e o primeiro Conselho de Estado do novo Presidente da República com o convidado Mario Draghi à tarde, e um caso político paralelo que de repente dominou a actualidade. O ministro da Cultura, João Soares, escreveu no Facebook que esperava “ter a sorte” de poder dar “bofetadas” ao crítico Augusto M. Seabra, estendendo essa vontade de aplicar “salutares bofetadas” também ao comentador Vasco Pulido Valente. Entre o silêncio e as críticas das forças políticas à esquerda e à direita, João Soares acabaria por dizer, por SMS, que é “um homem pacífico”. “Peço desculpas se os assustei.” Para Seabra, é apenas uma "semi-retractação".
Na origem do caso está um artigo de opinião de Augusto M. Seabra publicado esta sexta-feira no suplemento Ípsilon, e que foi colocado no site do PÚBLICO na quarta-feira, que critica os primeiros quatro meses de governação de João Soares à frente da pasta da Cultura. Passando em revista casos como a da demissão de António Lamas do Centro Cultural de Belém (CCB), a nomeação de Pacheco Pereira para a administração da Fundação de Serralves ou a suborçamentação do sector, Seabra critica a afirmação de “um estilo de compadrio, prepotência e grosseria” e diagnostica “uma situação de emergência” no sector cujas raízes atribui já ao governo de José Sócrates. No texto, João Soares é descrito como um “derrotado nato”, referindo-se às suas participações nas eleições autárquicas em Lisboa e em Sintra e para o cargo secretário-geral do PS.
Perante estas críticas, um dia depois, João Soares reagiu com um post na sua conta na rede social Facebook em que recordava: “Em 1999 prometi-lhe publicamente um par de bofetadas. Foi uma promessa que ainda não pude cumprir, não me cruzei com a personagem, Augusto M. Seabra, ao longo de todos estes anos. Mas continuo a esperar ter essa sorte. Lá chegará o dia”. Mais à frente no mesmo post, João Soares diz: “Estou a ver que tenho de o procurar, a ele e já agora ao Vasco Pulido Valente, para as salutares bofetadas. Só lhes podem fazer bem. A mim também”. De permeio, cita “uma amiga” que não nomeia e que tece comentários sobre o “combustível” do crítico, o “azedume, o álcool e a consequente degradação cerebral”.
Para Augusto M. Seabra, a ameaça de João Soares "é inqualificável": "Acho inqualificável que, num governo democrático, um membro desse governo faça ameaças de agressão física a alguém que usou do direito da opinião crítica", disse o programador e crítico ao PÚBLICO.
Um dos temas focados por Seabra, o caso CCB, foi também o tema de uma crónica de Vasco Pulido Valente, que escreveu no início de Março no PÚBLICO sobre a saída de António Lamas da presidência da instituição cultural. Criticando o facto de a sua demissão pelo ministro ter sido um “espectáculo público”, refere o que considera ser a "insignificância e a grosseria" de João Soares. Visado agora nas declarações do titular da pasta da Cultura e da comunicação social pública (da RTP, da RDP e da agência Lusa), Pulido Valente diz, sobre as eventuais consequências políticas deste acto do ministro: "Não sei o que é permitido e o que não é permitido neste Governo". E riposta: "Fico à espera, para me dar as bofetadas".
Ao final da manhã, as declarações do ministro no Facebook já mereciam reacções políticas de vários quadrantes. Ao longo do dia o PÚBLICO tentou, sem obter resposta, contactar João Soares, que três horas depois da publicação do seu post corrigira mesmo nele a ortografia de um par de palavras – durante a manhã, o ministro, sem aceitar gravar declarações para as rádios, reiterava as suas afirmações à Antena 1 e à TSF. A meio da tarde, chegam as primeiras palavras do ministro socialista sobre o caso, numa curta mensagem de telemóvel. "Sou um homem pacífico, nunca bati em ninguém. Não reagi a opiniões, reagi a insultos. Peço desculpa se os assustei”, escreveu num SMS em resposta ao semanário Expresso.
E à noite, à hora em que surgia a reacção de António Costa, a Lusa publicava um pedido de desculpas formal de João Soares: “A minha intenção não foi ofender. Se ofendi alguém, peço desculpa”. Na nota, o ministro volta a lembrar que é um homem pacífico e acrescenta: “Penso que a liberdade de opinião não pode ser confundida com insultos e calúnias pessoais, atentatórias da honra e do bom nome de cada um”.
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As “bofetadas” de João Soares geraram centenas de comentários contra e pró as palavras do ministro nesse post e noutros seus textos no Facebook, o mesmo acontecendo nos espaços dedicados aos leitores nos sites de informação e nos fóruns televisivos. Debateu-se dignidade política, liberdade de imprensa, de expressão ou o que configura uma ameaça.
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Falando do ponto de vista jurídico, o advogado Rui Patrício disse ao PÚBLICO que não vê nas palavras de João Soares qualquer ameaça física, nem um constrangimento à liberdade de imprensa: “Não há nenhum crime de ameaça que venha no Código Penal. Também não há qualquer constrangimento que se pudesse encontrar relativamente à liberdade de imprensa”, disse o jurista, considerando que “não basta que haja uma ameaça, é preciso que seja de tal forma que cause receio, ou que seja constrangedora”, “provocar um certo efeito de coacção na pessoa”, algo que não identifica neste caso. Questionado pelo PÚBLICO sobre o que as declarações do ministro representam no âmbito da liberdade de expressão, o Sindicato dos Jornalistas "vinca a defesa” desse direito fundamental e rejeitou “qualquer tentativa de a limitar e ameaçar”, recordando “a responsabilidade de detentores de cargos públicos, nomeadamente governantes, na garantia de que esse direito possa ser exercido livremente e sem condicionamentos de qualquer espécie".
Já no plano o político, a direita e o Bloco de Esquerda foram os únicos a fazer declarações oficiais – o PS e o PCP escolheram o silêncio.
Hugo Soares, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, disse no Parlamento que as declarações de João Soares são “inqualificáveis” e "demonstram um padrão de falta de respeito pela liberdade de expressão”, enquanto o CDS-PP enfatizava a importância do pedido de desculpas do ministro da Cultura. “Em democracia, o confronto de ideias e a crítica são sempre legítimos. O que não é legítimo é um ministro da República reagir às críticas com ameaças de confronto físico. Por isso, o mínimo que se pode exigir é um pedido de desculpas", como afirmou aos jornalistas o deputado centrista António Carlos Monteiro no Parlamento. Numa curta declaração, o centrista considerou o comportamento do ministro "lamentável".
Nenhum dos partidos pediu a demissão do ministro, mas Sérgio Azevedo, outro vice-presidente da bancada parlamentar do PSD tinha apontado a porta da saída a João Soares no Facebook durante a manhã. “Um ministro (sim com m pequeno, minúsculo) que promete 'bofetadas' a um crítico, para além de ser um tipo pequenino, só tem um caminho: a demissão!", escreveu o deputado na sua página pessoal na rede social.
Essa é também a opinião de Daniel Oliveira, comentador político e fundador do Bloco de Esquerda e do Livre. "Um ministro que ameaça fisicamente quem o critica não pode ser ministro", escreveu no Facebook. Daniel Oliveira considera que depois do post das bofetadas, "João Soares tem de se demitir, António Costa tem de se demarcar desta ofensa à democracia e os partidos que sustentam o governo têm de ser muitíssimo claros. Não há inimputáveis em política e se permitimos que a ameaça física passe a ser a forma dos governos reagirem à crítica tudo é possível".
Os partidos da coligação no governo foram mais comedidos ou mesmo silenciosos em relação ao caso. O grupo parlamentar do PS disse que "está em silêncio" e a bancada do PCP optou por não comentar. Os responsáveis do Bloco de Esquerda anunciaram que não fariam declarações públicas, mas o partido tomou posição através de uma fonte oficial ouvida pelo PÚBLICO: "São coisas que um governante não deve dizer. Não é o cargo que se deve adaptar ao titular, é o titular que se deve adaptar ao cargo."
Com o dia a terminar com a presença prevista de João Soares na apresentação do novo livro de Manuel Alegre e numa peça de teatro, Augusto M. Seabra reagiu às novas declarações do ministro em que apresenta desculpas por ter assustado os visados. Ao telefone, garante: "Não me assustei e o pedido de desculpas não me afecta em termos pessoais", mantendo o caso, explica, no território da política. E é nesse campo que considera que "depois de ter feito um disparate monstruoso, o ministro está a ensaiar uma semi-retractação, em parte pela evidência de que provocou uma tempestade de reacções hostis ao seu comentário" nas redes sociais e fora delas, defende. com Isabel Salema e Sofia Rodrigues