Os interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?
A defesa da privacidade e do segredo de justiça não podem ignorar o dever de prestar contas quando estão em causa crimes tão graves.
Imaginemos que até hoje nada se sabia do processo envolvendo José Sócrates, para além dos crimes de que é suspeito: corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. O segredo de justiça teria sido rigorosamente preservado; o Ministério Público, como é seu hábito, emitiria somente comunicados obscuros em português gongórico; e o ex-primeiro-ministro andaria entretido a fazer digressões pelas televisões e auditórios do país, queixando-se de perseguições, cabalas e urdiduras, e indignando-se perante a terrível infâmia a que estava a ser sujeito. Pergunta: enquanto participantes num espaço público, nós estaríamos mais mal ou mais bem servidos com tão cumpridora ignorância?
A resposta é óbvia. Embora haja um problema evidente com o segredo de justiça em Portugal, a ter de escolher entre um sistema com fugas e um sistema opaco, eu escolho o sistema com fugas. Quem defende o segredo de justiça de forma absoluta, como acontece com tantos ex-admiradores de José Sócrates, está a desvalorizar a importância de todos nós sermos agentes activos no debate democrático. Esta ideia de que divulgar as gravações dos inquéritos judiciais não é mais do que voyeurismo ou populismo denuncia uma visão profundamente passiva da cidadania, que apenas atribui a cada um de nós e à comunicação social o triste dever de aguardar pacientemente que o poder judicial faça o seu caminho, sem vigilância nem escrutínio. Ora, os vários poderes numa sociedade democrática não são apenas complementares – eles são conflituantes. E é por isso que em nome do interesse público é tantas vezes admitida à comunicação social a quebra do segredo de justiça.
Convém não esquecer que um político se torna figura pública por opção deliberada, e deve a sua projecção e carreira à confiança que os eleitores nele depositaram, em troca da promessa de uma administração honesta da coisa pública. A defesa da privacidade e do segredo de justiça não podem ignorar o dever de prestar contas quando estão em causa crimes tão graves, e é por isso que a lei permite que qualquer pessoa se possa constituir assistente num processo que envolva crimes de corrupção ou tráfico de influências. Esse é um dos argumentos que podem justificar a divulgação dos interrogatórios por parte do Correio da Manhã. Outro argumento, mais importante, é este: demonstrar aos leitores que as declarações públicas de Sócrates e dos seus advogados sobre a inexistência de indícios são pura e simplesmente mentira. A facilidade com que um ex-primeiro-ministro divulga o seu discurso nos media exige um exercício de contraditório que os meios judiciais, pela sua própria natureza, não estão em condições de oferecer. A comunicação social está – e ela também serve para isso.
O Correio da Manhã teve atitudes inconcebíveis ao longo da operação Marquês, a mais grave das quais foi ter pedido, através de dois jornalistas da casa que são assistentes no processo, que Fernanda Câncio e Sofia Fava fossem constituídas arguidas. É uma decisão tão idiota que custa a crer que alguém a tenha tomado. Mas o interesse jornalístico do seu trabalho é inegável e o modo como toda a comunicação social está a ignorar as gravações é um absurdo. O Correio da Manhã envolveu-se demasiado no caso Sócrates? É possível. Mas boa parte dos jornais está – outra vez – a envolver-se muito menos do que devia.