Condenação de activistas reforça ideia de que Angola “vive uma ditadura”
Quem pensa, quem fala e quem age diferente é castigado, acusa Elias Isaac da Open Society. Advogados contestam acusação de “malfeitoria” de última hora. Penalista diz que decisão é inconstitucional. Escritor José Eduardo Agualusa prevê reforço da contestação ao regime
A condenação de 17 activistas angolanos por crimes de “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”, esta segunda-feira, não causou especial surpresa, mas está a ser vista como sinal de que Angola “vive uma ditadura”. Analistas de várias áreas acusam o sistema judicial de não ser independente, de estar ao serviço do partido no poder, o MPLA, e de controlar a liberdade de expressão, operando cada vez mais como uma ditadura e menos como uma democracia.
Os 17 foram condenados a penas de prisão efectiva que variam entre os dois e os oito anos e já estão na cadeia de Viana, incluindo as duas activistas, Rosa Conde e Laurinda Gouveia, que passaram o julgamento em liberdade, disse ao PÚBLICO um dos advogados, Zola Ferreira. Domingos da Cruz, autor do livro Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura. Filosofia Política da Libertação para Angola, que estava a ser discutido quando eles foram presos a 20 de Junho, e considerado o líder do grupo, foi condenado à pena mais alta: oito anos e seis meses de prisão. O rapper luso-angolano Luaty Beirão foi condenado a cinco anos e seis meses.
Nuno Dala, Sedrick de Carvalho, Nito Alves, Inocêncio de Brito, Laurinda Gouveia, Fernando António Tomás “Nicola”, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Osvaldo Caholo, Arante Kivuvu, Albano Evaristo Bingo-Bingo, Nelson Dibango, Hitler Samussuku e José Gomes Hata foram condenados a quatro anos e seis meses de prisão. Rosa Conde e Jeremias Benedito foram condenados a dois anos e três meses de prisão.
No decurso do julgamento, que se arrasta desde 16 de Novembro, sempre rodeado de fortes medidas de segurança, e adiado várias vezes, o Ministério Público angolano deixou cair a acusação de actos preparatórios para um atentado contra o Presidente. A 21 de Março, a representante do Ministério Público, Isabel Fançony Nicolau, alegou que não ficou provado que os 15+2 pretendiam atentar contra a vida de José Eduardo dos Santos e aos demais órgãos de soberania e também absolveu o arguido Manuel Chivonde Baptista Nito Alves do crime de falsificação de identidade.
Segundo o site angolano Rede Angola, ficou provado que os debates realizados pelos activistas serviram para planear e concretizar os actos de rebelião. “Não há qualquer dúvida de que os arguidos estavam a preparar actos de rebelião porque os mesmos não pretendiam apenas ler um livro [Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura, do académico Domingos da Cruz). Os arguidos queriam aprender como destituir o poder”, disse nas alegações finais a representante do Ministério Público.
Isabel Fançony Nicolau alegou que, pelo facto de não responderem a nenhuma das questões do juiz e nem da acusação, os 17 activistas formaram uma associação de malfeitores, liderada pelo co-réu Domingos da Cruz e por Luaty Beirão. E pediu a condenação dos arguidos pela formação de organização criminosa.
Os activistas recusaram sempre as acusações e garantiram em tribunal que os encontros semanais que promoviam visavam discutir política e não qualquer acção de destituição do Governo ou actos violentos.
Quando foram detidos a 20 de Junho, 13 dos detidos estavam reunidos pela sexta vez numa das salas de aula ligadas à residência em Luanda de Alberto Neto, líder do agora extinto Partido Democrático Angolano e o terceiro candidato mais votado nas eleições de 1992. Não tinha passado uma hora do início do debate sobre o referido livro/brochura, baseado na obra Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp (Tinda-da-China) quando cerca de dez homens armados entraram na sala, com um aparato que foi descrito como sendo “de filme": deram-lhes ordens para deitarem a cabeça nas carteiras e levantarem as mãos. Houve mesmo, entre esse grupo de homens, quem filmasse a operação.
Decisão “sem sentido"
A decisão não surpreendeu a defesa. “O que nos abalou foi as penas aplicadas serem tão gravosas”, disse Zola Ferreira. “O juiz foi vago nas suas fundamentações”, diz relativamente à acusação por associação de malfeitores, que o Ministério Público acrescentou nas alegações finais, no dia 21 de Março, e pelo qual os réus não tinham sido pronunciados.
Os advogados de defesa defendem que a introdução deste crime é “ilegal” e serve de justificação para enquadrar o caso num “crime mais gravoso sem possibilidade de ter pena suspensa ou convertível a multa”. Se fossem acusados de actos preparatórios de rebelião, crime pelo qual estavam acusados no início do julgamento, a pena máxima seria de três anos, com possibilidade de ser suspensa na execução. “Todos receberam cúmulo de penas” de ambos os crimes.
Já foi apresentado “recurso em acta no acto da condenação” e agora há cinco dias para recorrer da decisão no Tribunal Supremo e no Tribunal Constitucional, explicou o advogado. “Também solicitámos o recurso com efeito suspensivo” para que os condenados aguardassem a decisão do Tribunal Supremo fora da prisão. “Mas o juiz só admitiu recurso para o processo e não relativamente à situação carcerária.” Terminada a leitura da sentença, “os condenados foram directamente conduzidos à prisão a pedido do juiz”.
O desfecho é visto como inconstitucional pelo penalista angolano Benja Satula. “Não faz sentido absolutamente nenhum que a primeira acusação seja de actos preparatórios de rebelião, golpe de Estado e atentado contra o Presidente e não se produza prova disso, e no final o Ministério Público venha dizer que havia prova de crime de associação de malfeitores. No Código Penal diz que a associação de malfeitores pressupõe que tenha havido um pacto e, por causa disso, os malfeitores tenham praticado actos maus. Se foram acusados de actos preparatórios, estes não podem ser incluídos no tipo legal de associação de malfeitores”, disse ao PÚBLICO. Entrar no tribunal descalços ou não responder ao juiz não pode ser considerado crime de malfeitoria, defende: quanto muito é desrespeito ao tribunal.
O advogado, que não está ligado ao processo, acredita que é isso mesmo que o Tribunal Supremo irá declarar – o que por lei pode ser até daqui a entre seis meses a um ano, comentou. Depois disso, caso a decisão do Supremo seja desfavorável aos arguidos, o Tribunal Constitucional pode pronunciar-se e aí demorar outros 45 dias.
Além disso, acrescenta Benja Satula, houve uma alteração da prova e dos factos e quando assim é a Constituição diz que se deve proceder ao direito de defesa e ao princípio do contraditório: ou seja, o tribunal deveria permitir aos arguidos o direito de defesa. Satula comenta também que o facto de os arguidos irem de novo para a cadeia será mais uma violação da Constituição, pois a interposição de recurso suspende os efeitos da decisão. Não tem dúvidas de que o espírito foi de condenar os activistas.
"É crime pensar diferente"
Elias Isaac, director da Open Society Iniciative of Southern Africa (OSISA) em Luanda, apontado como um dos membros do dito Governo de Salvação Nacional, considera a decisão “uma autêntica vergonha para um país que hoje está a presidir ao conselho de segurança das Nações Unidas quando aqui, em Angola, está a fazer-se uma injustiça”.
Não tem pudor em afirmar que “Angola vive uma ditadura” e que “o multipartidarismo não é sinónimo de democracia”. A decisão só reforça isso mesmo porque “não houve provas nenhumas”, diz. “A lei não pode supor”: “Não se vai julgar alguém que está com um balde de água e supor que essa pessoa vai fazer um acto. O julgamento foi baseado em suposições. A lei é aplicada e baseada em factos. Um grupo de pessoas estar a ler um livro não diz nada [sobre o que essas pessoas vão fazer]. Estas deduções são politicamente motivadas.”
Porém, Elias Isaac acha o desfecho previsível porque, “infelizmente, o sistema de justiça angolano foi estabelecido para punir os cidadãos e proteger os membros do partido no poder”. E diz: “Todo o cidadão angolano é punido pela justiça porque não pode pensar, e todo o membro do partido do poder é protegido”. Preocupa-o o facto de não existir justiça em Angola, mas um sistema policial que se estabeleceu num tempo de guerra e de ditadura e que continua a manter as mesmas características. “Não há registo de que as pessoas que pensam diferente, que falam diferente, sobrevivam neste contexto. Na verdade, é um dia muito infeliz, não só para os sistemas de justiça, mas para todo o povo: num país supostamente democrático, onde a lei deveria existir, parece que vivemos no tempo das ditaduras militares. Quem pensa, quem fala e quem age diferente é castigado. Estes são jovens que foram condenados porque cometeram o crime de pensar diferente.”
Filomeno Vieira Lopes, membro do partido Bloco Democrático e do Grupo de Apoio aos Presos Políticos Angolanos, vê claramente o lado político do julgamento e das condenações, “que estão de acordo com a mensagem que o poder pretende dar”: todos os actos de denúncia devem ser penalizados. Sinal disso é o facto de Domingos da Cruz, autor do livro no centro do furacão, ter tido a pena mais alta. “Ficou clara a motivação política uma vez que começou com uma acusação cuja moldura penal não ia para além dos três anos e acabou em penas muito superiores. Mostra que há necessidade de dar um correctivo para fazer recuar toda a contestação”. Angola vive um ponto de inflexão, um retrocesso em relação ao seu processo democrático e uma clara opção pela ditadura, acrescenta. “Angola está num beco sem saída do ponto de vista democrático”.
"É a aribitrariedade completa”
Sem dúvida que “este foi um processo claramente político”, como comentou ao PÚBLICO o escritor angolano José Eduardo Agualusa: “As acusações foram mudando ao longo do tempo. Todo o processo foi burlesco, acabando com esta acusação de malfeitores que justifica a sentença”, acrescentou. “Uma coisa que aprendi ao longo dos anos foi a de nunca subestimar a estupidez do regime. Este foi um gesto, do ponto de vista político, absolutamente estúpido. Desde o fim da guerra que Angola não passava por uma crise (económica) tão grave. Esta condenação vai ter uma consequência imediata que é fazer regressar o movimento de solidariedade para com os presos e a contestação contra o regime”.
Já o professor da Universidade Católica de Angola Nelson Pestana, e escritor sob o pseudónimo Eduardo Bonavena, considerou o desfecho do julgamento “completamente surpreendente pela violência” e por mostrar “a arbitrariedade a que o regime chegou”, disse ao PÚBLICO. “Isto quer dizer que qualquer cidadão pode ser preso acusado de qualquer coisa e ser condenado a pena máxima no país”, denuncia Pestana. “Porque a qualquer momento se pode retirar ou acrescentar novas acusações. É a arbitrariedade completa.”
Apesar de o desfecho ser “intimidatório”, analisa, é natural que aconteçam “novas manifestações organizadas pela ala da juventude do movimento revolucionário”. Em consequência disto, o académico considera que “a contestação interna e o descrédito internacional” vão aumentar. “É uma vergonha. Desacreditam o país e fazem crescer a revolta.”
É justamente de impacto internacional que fala Ricardo Soares de Oliveira, professor associado de Política Comparada na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e autor de vários livros, entre os quais Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil (Tinta da China, 2015). “Espera-se agora que o Governo português, que tanta boa fé demonstrou em relação ao funcionamento das ‘instituições angolanas’ no decorrer deste processo, expresse de forma inequívoca a discordância que qualquer Estado de Direito tem de ter em relação a este travesti de justiça”, diz. “Em vez de se esconderem, os apologistas portugueses do regime, que tanto receio têm da judicialização da relação bilateral, deviam mostrar a cara e defender esta charada. Mas para tal precisam de não ter vergonha na cara.”
O académico português diz que chegou a pensar que o regime angolano iria “encontrar algum pretexto para acabar com este processo de forma discreta” perante as acusações absurdas [de preparação de atentado contra o Presidente e de rebelião] e reacções internacionais muito negativas”.
No entanto, “a perpetuação [do processo] ao longo de meses e a acusação de malfeitoria no fim revelaram que o resultado ia ser ‘exemplar’, à velha maneira estalinista de dar uma lição”, acusa. E conclui: “Isto não deixa de ser chocante, e a única reacção possível é a de rejeição enfática da seriedade de todo o processo.”
Numa breve nota, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português disse ter acompanhado o processo “pelos canais diplomáticos adequados” dos 17 “cidadãos angolanos” – um dos quais, Luaty Beirão, tem também nacionalidade portuguesa – e ter tomado “boa nota da comunicação, pela defesa, da intenção de interpor recurso judicial em face da gravidade e dimensão das penas decididas pelo tribunal de primeira instância”. O Governo português acrescenta também que “confia” que a tramitação do processo “obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”.
Correcção: por lapso escrevemos livre arbítrio em vez de arbitrariedade na citação de Nelson Pestana