Quem se mete com o Alentejo leva
Uma escrita que mistura a autobiografia com o ensaio é uma tradição anglo-saxónica que ainda não entrou nas cabecinhas nacionais.
Henrique Raposo não precisa que eu o defenda nas páginas do PÚBLICO, até porque os momentos de histeria via redes sociais seguem sempre a mesma mecânica: 1) um tipo qualquer descobre uma coisa na internet que o irrita; 2) um grupo de gente identifica-se com esse tipo qualquer e inicia o processo de indignação descontrolada e analfabeta via Facebook em crescendo de idiotia; 3) outro grupo de gente que não gosta do Facebook reflecte sobre as redes sociais e conclui que Mark Zuckerberg é o anti-Cristo; 4) um terceiro grupo sublinha a necessidade de preservar o direito de cada um a escrever aquilo que bem lhe apetece; 5) cinco dias depois, já ninguém se lembra de nada disto.
Sendo esta a mecânica invariável da síndrome HRS (Histeria das Redes Sociais) não vale a pena estar aqui a gastar o meu latim acerca dos pontos 1 a 5 – é melhor ir atrás do ponto 1. Ou seja, tentar encontrar as razões que levam a que as opiniões de Henrique Raposo sobre o Alentejo tenham irritado tanta gente. E aqui eu identifico três outros pontos, que me parecem bem mais interessantes como reflexão: 1) porque Henrique Raposo é um tipo de direita que escreve no Expresso sem o tom delicodoce apreciado pela intelligentsia nacional, logo, está no pódio dos colunistas que o povo digital mais adora odiar; 2) porque um tipo de direita pôr-se a escrever reflexões iconoclastas sobre o grande bastião do PCP, e logo na colecção “do tipo do Pingo Doce”, é uma provocação que não se admite; 3) porque uma escrita que mistura a autobiografia com o ensaio é uma tradição anglo-saxónica que ainda não entrou nas cabecinhas nacionais.
É claro que estou a ser optimista: muitos dos parolos que debitaram parolices sobre Alentejo Prometido nunca leram o livro e limitaram-se a visionar 60 segundos do programa da SIC Radical Irritações. Mas outros menos parolos padecem dos complexos 1 a 3, e esses são muito mais perniciosos do que os tipos que simplesmente sofrem de HRS. O livro do Henrique Raposo é claramente devedor do estilo que Maria Filomena Mónica adoptou em numerosas obras, e que muita falta faz nesta terra: um cruzamento de biografia com história, antropologia e sociologia, que não tem a ambição de produzir textos académicos, mas que contém uma inventividade, um arrojo interpretativo e uma dimensão de provocação intelectual que são extremamente estimulantes para quem gosta de pensar além da sebenta. Contêm o risco do erro, mas não o bocejo do papagueio. Eu aprecio o estilo – e recomendo.
Uma nota final. O lançamento de Alentejo Prometido, que irá decorrer hoje, pelas 18.30, na livraria Bertrand do Picoas Plaza, estava originalmente previsto para um novo espaço lisboeta, chamado Tintos e Tintas. Entretanto, o local teve de ser alterado, por decisão dos proprietários. Um deles, João Saião Lopes, justificou-se à revista Sábado: “Não tem a ver com o conteúdo do livro mas com a polémica em que não queremos estar envolvidos.” É pena. Se João Saião Lopes tivesse objecções intelectuais ao livro, eu ainda poderia compreender o recuo. Mas se a única razão é não querer estar envolvido numa polémica que pelos seus termos desbragados e pelas patéticas ameaças é, em primeiro lugar, uma afronta à liberdade de expressão, então este desejo de não envolvimento por parte da Tintos e Tintas é um mero gesto de cobardia, que deve ser assinalado. Do mesmo modo, a minha homenagem à livraria Bertrand por, felizmente, não pensar da mesma forma.