“Neste momento temos uma democracia de fachada na Guiné-Bissau”

São da geração pós-independência. Estudaram fenómenos como a imigração ou os sistemas políticos. O sociólogo guineense Miguel de Barros é o terceiro dos cinco pensadores africanos entrevistados nesta série.

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“O Estado é tão ausente que, mesmo que haja fracturas, não têm incidência junto das comunidades” Frederico Batista

É um crítico da ausência de intervenção da comunidade internacional na situação política da Guiné-Bissau. O sociólogo Miguel de Barros (n. 1980) defende que não se trata de uma questão de intervenção dessa comunidade internacional na soberania do país, mas de monitorizar os processos que apoiou financeiramente. Neste momento, a situação política continua num impasse. A Comissão Permanente deliberou a perda de mandato de15 deputados do PAIGC, expulsos do partido, em consequência de não cumprimento da disciplina partidária – recorreram à justiça mas o processo ainda está no Supremo Tribunal de Justiça. O Presidente da República, José Mário Vaz, enviou uma proposta de acordo político ao PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) e à mesa da  Assembleia Nacional Popular onde aponta para uma solução política - aguardam-se respostas. Entretanto, o Conselho de Segurança das Nações Unidas renovou o mandato da sua missão no país para mas um ano.

Miguel de Barros é director executivo de uma das mais antigas e importantes ONG’s da Guiné-Bisssau, a Tiniguena. Licenciado pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), investigador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa – INEP (Guiné-Bissau), e de outros centros de investigação em África, América do Sul e Europa, é também fundador do Movimento Social Acção Cidadã (2012) e membro da direcção da Rede da Sociedade Civil para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Autor de várias obras, entre elas De Pioneiros à Rappers: dinâmicas protagonizadas pelos jovens na Guiné-Bissau (Vol. I), acaba de publicar A Sociedade Civil e o Estado na Guiné-Bissau.

Como olha para a situação actual e como se pode ler o que aconteceu à luz dos últimos 40 anos?
Na análise da evolução política da Guiné-Bissau podemos destacar três processos. Um primeiro tem a ver com o forte enraizamento da cultura de partido único que passou para a cultura de único partido. Isso tem-se consubstanciado em várias dinâmicas, desde as resistências que houve do então presidente da República Nino Vieira em ir para a reforma e favorecer uma abertura do próprio PAIGC para se adaptar ao novo regime político. [Nino Vieira foi presidente de 1980 a 1999, e de 2005 a 2009].

 Após o conflito político-militar, onde se viram todas as cristalizações, criou-se uma ideia de mudança, de renovação. Mas isso foi esbarrar numa cultura política herdada da parte de Kumba Ialá que encarnava essa forma de estar com um pendor étnico e populista muito forte e que contribuiu para a fragilização de outros grupos políticos, cívicos, judiciais e para a fragilização do próprio estado, que já estava desestruturado pelo conflito político-militar. Esses dois elementos favoreceram a presença dos militares na cena política de forma efectiva.

Um terceiro processo que vivemos até hoje tem a ver com a dinâmica de comercialização da consciência, da comercialização dos votos onde a questão ideológica não é importante, onde a questão ética não é o fulcral da acção política, onde o serviço da governança em favor da população e da resolução dos problemas sociais também não é prioritário – mas sim o desenvolvimento de um actor político capaz financeiramente de comprar vontades, alianças. Ao chegarmos ao período pós Kumba Ialá (presidente entre 2000-2003) essa tendência ficou muito forte, não só no PAIGC mas no PRS (Partido da Renovação Social): as dinâmicas de aquisição do poder, ao transitar da captura militar do poder civil, passaram pela captura económica-financeira do poder político. E é disto, neste momento, que a Guiné-Bissau é refém.

De que forma é refém?
Esta é a terceira vez que o PAIGC ganha eleições com maioria e depois perde o poder num golpe que acontece no interior do partido. Porque as alianças são frágeis, porque não reflectem, numa visão ideológica, um pacto de regime em relação à estabilidade política, à governança, aos principais consensos em matéria governativa.

Esse elemento é muito mais crítico quando, pela primeira vez, conseguiu definir-se uma visão do país, a médio e longo prazo, partilhada por todos os sectores e por vários actores sociais. Ao mesmo tempo, questionava-se que uma das grandes dificuldades de garantir a estabilidade era que quem ganha, ganha tudo, e quem perde, perde tudo. Avançou-se para um modelo que se pensou que podia reduzir essa carga de destabilização.

Ficou claro também que no contexto guineense isso não é um elemento garantido porque a lógica das alianças não é feita no sentido do país, mas no sentido de favorecer o melhor posicionamento político na estrutura do estado para capturar o património público, os bens e serviços para satisfação de interesses de grupos e dos sectores com quem esses grupos se articulam – e dessa forma permitir a canalização dos recursos para depois garantir resultados eleitorais. Quando os resultados eleitorais não são assegurados por essa via, como nas últimas eleições onde houve sanções por parte da população aos actores e partidos que estavam implicados no golpe de estado, automaticamente cria-se uma outra conjuntura para consolidar esse tipo de golpe, salvaguardando os tais interesses. Desde 2005 isso é uma nova tendência que tem estado dentro das dinâmicas do poder e do concurso às eleições.

Como é que a sociedade reage a essas fracturas e à lógica de servir-se da política para servir a si próprio?
O estado na Guiné-Bissau é tão ausente ao nível nacional que, mesmo que haja fracturas do ponto de vista político, essas fracturas não têm incidência junto das comunidades, junto das populações. Por exemplo, o conflito político-militar de 1998/1999 era entre poderes que queriam instalar-se e não propriamente entre civis e comunidades que estavam a gladiar-se para ter acesso a esse poder. O golpe de estado de 12 de Abril de 2012 acaba por levar esse debate e interacção ao nível do espaço político-partidário e dos órgãos de soberania e não entre regiões, entre comunidades, entre povos. Neste momento estamos a assistir a uma elevação de escala desse jogo político. Se por um lado, do ponto de vista de maior nível de incidência de violência isso não acontece, do ponto de vista social já acontece. A forma como esses conflitos têm afectado a capacidade de desenvolvimento socioeconómico tem tornado as comunidades mais frágeis do ponto de vista da resposta imediata – ao mesmo tempo dá mais resiliência em termos de iniciativas, dinâmicas que permitem maior nível de adaptação e de respostas face a essa ausência do estado.

Agora o elemento mais pernicioso tem sido a dificuldade de reacção, porque o nível de pobreza e a falta de capacidade e liquidez financeira para adquirir produtos e serviços faz com que a permeabilidade à corrupção seja mais fácil. Essas comunidades podem ser solicitadas para darem corpo, por exemplo, a manifestações. O estado acaba por ter a disponibilidade de distribuir recursos de forma directa, comprando níveis de mobilização e de aderência em actos públicos. Mas isso não corresponde depois à expressão que a população manifesta nas eleições. Até porque desde 1994 que as populações sempre votaram na mudança. Agora as articulações que são feitas por grupos político-partidários acabam por configurar uma nova tendência.

Tem havido um desajuste total entre aquilo que é o discurso político e aquilo que é a acção.

Que papel desempenha a comunidade internacional?
A Guiné-Bissau é um país frágil, que depende do apoio internacional. O orçamento geral do estado teve quase 90% de ajuda internacional. Ao mesmo tempo, tem faltado a capacidade da comunidade internacional de influenciar a agenda governativa, de acompanhar e de monitorizar. Tem faltado porque falta também alguma capacidade de liderança da comunidade internacional em assumir aquilo que é a sua contribuição, não de forma diplomática mas pragmática, objectiva. Mesmo quando estamos em situações de violação da Constituição, de mudança daquilo que é a prática governativa em relação aos discursos eleitorais cujos programas são conhecidos e partilhados, a comunidade internacional é passiva relativamente a essa fiscalização. Há muita gente que tem dito que isto poderia consubstanciar-se numa violação da soberania, mas é uma falsa questão: a partir do momento que um estado não consegue financiar o orçamento geral do estado, não consegue financiar o seu desenvolvimento até para pagamento dos salários, e que esse dinheiro vem de uma contribuição não nacional, já estamos a falar da questão da soberania. Isso dá legitimidade a uma comunidade internacional para ter maior capacidade actuante sobre esse espaço.

Mas quem é essa comunidade internacional?
Na Guiné-Bissau é muito fácil perceber quem são as comunidades internacionais; a nível multilateral falamos das Nações Unidas, da União Africana, da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), da União Europeia (UE), da União Africana, da CPLP (Comunidade Países de Língua Portuguesa). Do ponto de vista de financiamento do orçamento geral do Estado a UE tem mais peso nos programas transversais ou multissectoriais, como a reforma de defesa e segurança, justiça, administração pública, onde entram as Nações Unidas, CEDEAO, CPLP. A nível bilateral, estão ainda outros protagonistas, sendo os mais fortes a China e a Rússia, membros do Conselho de Segurança da ONU e com representação diplomática no país há décadas.

A liderança passa pela capacidade de coordenação daquilo que é a sua acção na Guiné-Bissau. Mas mesmo que isso não exista, do ponto de vista de direcção, têm que ser capazes de criar essa condição que permite a monotorização da governação e acção política e cívica nos sítios em que têm investimentos.

Como é que a comunidade internacional poderia ou deveria intervir numa situação como a actual?
Num primeiro momento a comunidade internacional financiou as eleições. Depois das eleições tinha que haver um pacto de estabilidade ou governativo entre a Guiné-Bissau e a comunidade internacional – não só uma convergência naquilo que é a visão estratégica apresentada em Bruxelas mas antes, do ponto de vista político, como é que o investimento que foi feito em termos das eleições poderia consubstanciar-se numa estabilidade perante a legislatura na qual se investiu. Isso tinha que partir de diálogo – a comunidade internacional deveria iniciar um processo de diálogo com os órgãos de soberania, com a sociedade civil e com o sector privado para ter esse momento onde iria selar-se um compromisso em relação à estabilidade.

E quem deveria ter tido essa iniciativa?
A comunidade internacional. Isso salvaguardava também o princípio de equidistanciamento e da participação equatitaiva de todos os actores envolvidos no processo. Em segundo lugar, ao financiar o orçamento geral do estado devia haver, como acontece em Moçambique e Cabo Verde, um grupo internacional para monitorizar o orçamento geral do estado anualmente – e esse grupo é rotativo. Aqui não há.

Quando esses elementos faltam e não há iniciativa, não há determinação proactiva, a comunidade internacional acaba por ser refém desse jogo estratégico de actores políticos e dos decisores. A própria comunidade internacional é muitas vezes reticente e descoordenada em se posicionar e isso vem da sua falta de visão comum, de capacidade de posicionamento e acção estratégica de apoiar um país, um estado frágil no qual as suas instituições precisam de ser acompanhadas e monitorizadas. Quando abdicam dessa condição de acompanhamento para depois dar anuência, qual é a expectativa que depois o povo tem em relação a essa comunidade internacional? Mesmo que os direitos humanos desse povo estejam em causa. É essa fraqueza que existe. Por isso fica cada vez mais evidente que a capacidade de transformação da Guiné-Bissau tem que surgir dos próprios guineenses. Cada vez mais o desafio passa por auto-organização das comunidades e em assumir a sua condição de governança. O dia em que conseguirmos fazer isso a nível de cada comunidade, para depois trazer um movimento de apoio a essa lógica de pensamento, estaremos a construir instituições fortes, comunidades resilientes com capacidade de transformação social.

Essa indefinição da comunidade internacional em agir pode ser vista como tentativa de não ingerência ou cuidado com aquele posicionamento que hoje é criticado de aplicação dos modelos ocidentais a países africanos.
É uma falsa questão. A questão da soberania não pode, nem deve ser colocada só quando os nossos interesses particulares estão em causa. Se não temos capacidade de financiar as eleições, e vamos buscar dinheiro a países terceiros, temos relevância em relação a esses países, não só na prestação de contas mas em garantir que o apoio que foi aplicado resulta de um processo que é bem-sucedido e produz resultados.

A Guiné-Bissau é uma democracia?
É uma democracia institucional. Do ponto de vista da cultura e prática democrática ainda não. E mesmo a nível institucional as nossas instituições são tão frágeis em relação ao pensamento, prática e discurso democrático que demonstra a fragilidade de todo o sistema e a necessidade do investimento forte na educação cívica, da cidadania da própria sociedade. Se não assumirmos o compromisso que a transformação estrutural da Guiné-Bissau tem que ter como pressuposto, o reforço do nosso modelo e sistema com base na nossa educação para a cidadania, e aquilo que deve ser a educação dos actores políticos e gestores públicos, estamos a enganar-nos a nós mesmos. Porque aquilo que temos neste momento é uma democracia de fachada.

Falou da necessidade de as respostas virem da sociedade civil – trabalha numa ONG, uma das mais conceituadas na Guiné-Bissau. Qual o papel das ONG’s e como tem colmatado as falhas do estado?
A emergência das ONG’s na Guiné-Bissau aconteceu num momento no qual o estado estava a ser fragilizado. Em 1984, com a liberalização económica, houve espaço para abertura do programa de ajustamento estrutural. Nessa altura pensou-se que a redução da presença do estado, do protagonismo do estado, era um mecanismo para favorecer um melhor estado. Só que essa redução acabou por cortar a capacidade de acção do estado em coisas essenciais. A nível educativo, na libertação do país havia só 14 licenciados, dez anos após a independência eram só 250. Com a redução de investimento no sector da educação vindo do programa estrutural houve esvaziamento ideológico do ensino, de conteúdos pedagógicos e da capacidade do sistema de ensino em dar ferramentas a quem vai à escola de mediar a sua relação com o trabalho e com a sociedade.

As ONG’s tiveram três momentos importantes: um momento de transição de 1988 para 1994 no qual, perante o esvaziamento e redução do estado, houve necessidade de criar outras instituições que pudessem colmatar a sua ausência ao nível das zonas rurais mas que salvaguardassem a questão de acesso aos serviços básicos, a questão dos direitos humanos e a conservação do ambiente – tendo a educação como elemento charneira. As cinco primeiras ONG’s tinham uma visão muito clara. A Tiniguena estava na conservação do ambiente, a Alternag na Educação, a Acção para o Desenvolvimento nos serviços de base e agricutura, a Liga Guineense nos direitos humanos e a Aguibef estava no apoio ao planeamento familiar e desenvolvimento. A partir de 1999, com o conflito político-militar, houve uma destruturação total. Essa destruturação acabou por ser um golpe ao nível de profissionalização. A própria acção da comunidade internacional levou a maioria dessas organizações para uma lógica de emergência e não de desenvolvimento. 

O estado faliu, tivemos governação de Kumba Ialá (de 2000 a 2003) – três anos, quatro primeiro-ministros, 64 ministros e secretários de estado, golpes de estado, riscos de conflito – e perdeu-se essa capacidade de estruturação. Mediante o jogo político, de comercialização de consciências, as ONG’s acabaram por ser vítimas desse processo, tendo alguma dificuldade de garantir que os campos não se entrecruzassem. E aí houve vários movimentos. O período crítico de 2003 e 2005 demonstrou a dificuldade de separação de campos.

Qual é o papel das ONG’s neste momento?
Desde a liberalização política, as ONG’s continuam a jogar um papel importante ao nível de apoio às comunidades locais, rurais. Porque os serviços sociais são quase inexistentes, o apoio ao sistema produtivo é essencial e a possibilidade de acesso a educação, qualificação, formação, tudo isso tem sido fornecido pelas ONG’s – posso dizer que são mais de 200 na Guiné-Bissau.

No campo dos direitos humanos, cívicos, democráticos, comunitários as ONG’s têm trabalhado imensamente. Chegamos a um nível em que a capacidade de acção das ONG’s acabou por ser uma acção de desenvolvimento participativo com as comunidades mas não com as instituições e o estado. Quando emergiam tinham estruturas mais coesas, mais fortes do que o próprio estado e isso desencadeou níveis de rivalidades e de dificuldades de interpretação dos papéis de ambos os lados.

O elemento crítico é o financiamento. O modelo, o sistema e a capacidade de financiamento das ONG’s é decorrente da incapacidade de o estado desenvolver mecanismos do seu próprio auto-financiamento. Muitas vezes, o que é gerado como financiamento nem sempre é bom financiamento, é orientado para os projectos de curto ciclo e de impacto imediato, mas apenas na lógica institucional. Num estado onde os próprios dispositivos são frágeis, a visão de desenvolvimento deve ser de longo prazo permitindo processos que favorecem maior empoderamento dos actores mas também maior capacidade de satisfação das necessidades.

Amanhã entrevista à jurista são-tomense Nayda Almeida

Esta série foi realizada em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos

 

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