“Pedimos a Bruxelas que as regras sejam claras e iguais para todos”
O ministro dos Negócios Estrangeiros deixa um aviso para a União Europeia: "A ideia de que há regras diferentes consoante a geografia ou a ideologia dos Governos seria fatal para a Europa."
Às nove da manhã, em vésperas de um decisivo Conselho Europeu dedicado ao cisma Britânico, Augusto Santos Silva recebe o PÚBLICO no Palácio das Necessidades. Tem os jornais do dia numa pequena mesa de leitura, ao lado da sua secretária de trabalho. Vai queixar-se do papel das "fontes sem rosto" que mandam recados de Bruxelas. É quase ríspido a afirmar que o Governo não negoceia Orçamentos com a Comissão Europeia. E é com ironia que reage quando questionado sobre as dificuldades sentidas nesse diálogo com as instâncias comunitárias: "A ideia de que Portugal pudesse servir de sinal de aviso é tão horrível, tão sinistra, que um ministro dos Negócios Estrangeiros só pode dizer sobre ela o mesmo que São Tomé: Só vendo."
Foi mais difícil negociar o Orçamento com o PCP e o BE ou com a Comissão Europeia?
São processos diferentes. O Orçamento de Estado (OE) é negociado em Portugal com os parceiros que apoiam o Governo, não é negociado em Bruxelas. O que aconteceu, cumprindo as regras do semestre europeu, foi que o Governo apresentou um esboço de orçamento e beneficiou da análise técnica que a Comissão, cumprindo as regras do tratado aplicável, fez sobre esse esboço. Não houve negociação política entre o Governo e a Comissão.
Quem pediu mais explicações, os militantes do PS ou Bruxelas?
A opinião pública compreendeu bem a proposta de lei do OE. Os nossos objectivos são ficar abaixo do limite de 3% para o défice; reduzir o défice estrutural, que aumentou em 2015 em 0,6% e vai baixar este ano; reduzir a dívida pública; reduzir a despesa pública no PIB e aumentar o rendimento disponível das famílias, que na nossa previsão aumentará 3% em 2016. Acho que isto é muito compreensível. Ao mesmo tempo que acabamos com a isenção de IMI dos fundos imobiliários repusemos a cláusula de salvaguarda do IMI para as famílias. Suspendemos a redução do IRC e reduzimos o IVA da restauração. Acabamos com o quociente familiar, que fazia com que as famílias mais ricas beneficiassem mais, e introduzimos uma dedução uniforme para as famílias em função do número de filhos.
O que lamenta ter ficado pelo caminho? O programa de estímulo do PS que a esquerda rejeitou, ou o desagravamento fiscal que Bruxelas não aceitou?
O que ficou prejudicado foi o agravamento fiscal em impostos, designadamente sobre os produtos petrolíferos, cujas consequências sobre os custos das empresas procuramos minorar, mas não é possível eliminar totalmente. A nossa previsão é que a majoração em 20% da dedução que as empresas de transportes podem fazer em relação ao custo do gasóleo e da gasolina equilibra as suas contas. O agravamento do ISP atinge o conjunto da economia e tínhamos procurado evitar isso. Apostávamos mais do que a Comissão Europeia num crescimento económico mais robusto, de 2,1%, e o valor final, depois das reuniões técnicas em Bruxelas é de 1,8%. Do nosso ponto de vista, quanto mais rápido for o crescimento da economia melhor é a consolidação estrutural das finanças públicas. Esse é um debate que continua a existir na Europa, entre aqueles que pensam - do meu ponto de vista, erradamente - que a melhor forma de consolidar as contas públicas é atacar a economia, e aqueles que - como eu - pensam que a consolidação das finanças e o crescimento da economia e do emprego são duas faces da mesma moeda.
Sendo que os primeiros são mais numerosos...
Não sei se são mais numerosos. Têm uma influência excessiva e perniciosa em muitas das instituições, em particular nas europeias e no FMI. Das europeias retiro o BCE, que foi a primeira, na Europa, a compreender que é preciso fazer uma viragem de política.
Está a falar da influência do Partido Popular Europeu (PPE)...
No Parlamento Europeu é normal que o debate se faça entre famílias políticas. Não há nada de perverso, pelo contrário, é muito saudável. A única coisa que não aceitamos é que na Comissão Europeia esse debate possa existir, porque isso não faz sentido. A Comissão é integrada por comissários do PPE, socialistas e liberais, mas como Comissão - guardiã dos tratados, representante de todos os países, independentemente da sua dimensão - tem a responsabilidade de assegurar que as regras são cumpridas da mesma forma por todos, sem olhar a geografia, nem a ideologia.
O discurso do Governo parece a quadratura do círculo. Como vai ser possível pôr a economia a crescer sem investimento público?
Não vejo qualquer quadratura do círculo. O primeiro instrumento que temos é a execução dos fundos comunitários. Quando assumimos funções, tinham sido pagos às empresas quatro milhões dos fundos do acordo de parceria 2014-2010. Hoje, esse valor subiu para 60 milhões. O compromisso é que nos primeiros 100 dias de Governo chegue aos 100 milhões. Segundo instrumento: continuar e desenvolver o que estava bem feito, o apoio ao sector exportador. Sabemos que as exportações portuguesas em 2015 subiram 4%, aumentaram 6% para a União Europeia (EU) e as importações subiram 2%. O nosso défice comercial reduziu-se. Temos de fazer mais naquilo que fomos piores nos últimos anos: a atracção do investimento. A meta é simples. Continuar com o reforço das exportações e ganhar a atracção do investimento. Quarto instrumento: capitalização das empresas sobre endividadas ao sistema bancário. Quando a banca teve de apertar a torneira, as empresas, sobretudo as PME, sofreram efeitos devastadores. Com o colapso do BES, esse efeitos foram ainda piores. Por isso pedimos a uma equipa, dirigida por José António Barros, anterior presidente da AEP, um homem das empresas, que num prazo relativamente curto fizesse propostas sobre outras formas de capitalização. Mecanismos de capitalização menos dependentes dos humores do sistema bancário são essenciais.
Reuniu-se em Bruxelas com o vice-presidente da Comissão. O que estava na sua agenda?
Conhecermo-nos pessoalmente, pois o comissário Timmermans é o primeiro vice-Presidente da Comissão e eu sou, além de MNE, o número dois do Governo português. Era importante que falássemos. E que pudéssemos trocar opiniões cara a cara sobre a forma como a Comissão vê os esforços do Governo português e como o Governo lê a leitura da Comissão sobre os seus esforços.
Disse que “o Governo não espera mais tolerância, nem compreensão, porque a Comissão Europeia não é uma entidade que deva tolerar o Governo português.”
Exactamente.
Bruxelas exorbitou competências e desvalorizou o papel das instituições portuguesas?
Não sei responder a essa pergunta porque não conheço o rosto das pessoas que falam em nome da Comissão nos órgãos de comunicação social, tecendo considerações, algumas acertadas outras absolutamente despropositadas, sobre assuntos de política interna, sem mostrarem a cara.
Está a falar de fontes da Comissão?
Das fontes anónimas que, dizendo falar em nome da Comissão, se pronunciaram logo na tarde em que Portugal apresentou o plano orçamental. Sendo absolutamente impossível que apresentassem uma análise fundamentada desse plano.
Existe uma quinta coluna em Bruxelas contra o Governo português?
Não, não. Já não estamos na segunda guerra mundial. Já não há quintas colunas.
Então, como classifica a situação?
Como uma forma incompreensível e indigna de tentar condicionar o debate político.
Disse que devia haver uma relação mais fluida da Comissão Europeia com Portugal, que deviam ser considerados aspectos sociais e constitucionais do nosso país. Esta ponderação não existiu?
Nos problemas de comunicação a responsabilidade é de ambas as partes. Por exemplo, várias vezes sou interrogado por colegas que dizem: "Achamos que vocês estão no bom caminho, mas não conseguimos compreender que vão já aumentar os funcionários públicos". Ao que eu respondo que não há aumento, que os funcionários públicos não são aumentados há seis anos. Vamos apenas eliminar os cortes que fizemos sobre os salários. "Mas os salários tinham sido cortados?" Sim, os salários tinham sido cortados. "E porque fazem isso agora?" Porque o programa de ajustamento terminou, e porque o Tribunal Constitucional considerou que esses cortes eram temporários e excepcionais. É preciso que não só os nossos parceiros conheçam os números do défice e da dívida, e que tenhamos de passar vários dias a explicar como é que cada um de calcula o défice estrutural, mas é muito importante que conheçam as razões constitucionais e estejam alertados para a situação social portuguesa. Quando digo aos meus colegas que as famílias portuguesas perderam 11% do seu rendimento nos últimos quatro anos, eles dizem-me que isto não pode continuar.
Qual é o problema político que está por trás desse problema de comunicação?
Um problema de comunicação sobre assuntos políticos é um problema político. Uma Comissão que viu sistematicamente o Governo português falhar todos os compromissos orçamentais, desconfia. É natural que quando chegamos a Bruxelas para discutir a redução do défice estrutural nos digam que Portugal, no ano passado, em vez de reduzir, aumentou o défice estrutural. Tenho de dar razão à Comissão quando parece desconfiar do comprometimento do país com a execução orçamental. Tenho de dizer, peço desculpa, mas o Governo é outro e o comprometimento é outro.
É legítima a pressão de Bruxelas?
Não vejo pressão de Bruxelas. Vejo a Comissão a desenvolver o seu trabalho. Analisou o esboço orçamental, houve reuniões, de natureza técnica, a maioria das quais sobre a forma de cálculo de um número. Nós consideramos como medidas não estruturais - o corte dos salários - coisas que a Comissão entendia, porque alguém lhes disse daqui, que eram estruturais.
Alguém? O Governo anterior?
Alguém lhes disse. Do ponto de vista da responsabilidade política o Governo anterior. Mas deixo o passado para os historiadores. O que estou a dizer é que não houve pressão. A Comissão pronunciou-se. Com base nisso, o Eurogrupo chamou a atenção para alguns riscos. A nossa obrigação é mostrar que os riscos estão controlados. Mas insisto: uma Comissão e um Ecofin que olha para um país que nos últimos quatro anos aprovou oito orçamentos, não houve um ano que não tivesse apresentado orçamentos rectificativos, compreendo que tenha de ser mais exigente do que seria se tivesse havido uma execução orçamental rigorosa.
Está a colocar a fasquia de exigência do Governo muito alta...
Sim, é verdade. Temos um nível de exigência bastante superior àquele que era tradição no passado recente.
Essa exigência não põe em risco o apoio do Governo no Parlamento?
Não creio. Todos temos a consciência de que é preciso responder às dificuldades que enfrentamos com muita exigência.
É por isso que o Governo andou a explicar o Orçamento no fim-de semana?
Não. O Governo português é um Governo minoritário do PS que beneficia do apoio de uma maioria parlamentar. É natural que os ministros se empenham em explicar em sessões públicas a lógica e os resultados esperados pelo orçamento.
A opinião pública não estava a perceber o Orçamento?
Como disse antes, acho que as pessoas compreendem bem as opções deste Orçamento, mas há uma coisa que as pessoas não compreendem: que nós, os europeus, sejamos tão flexíveis em relação a regras, que são fundadoras da UE, como a livre circulação de trabalhadores e a não-discriminação de ninguém em função da sua nacionalidade, que sejamos tão compreensivos na resposta a dificuldades de países que têm a ver com estas regras, e depois sejamos tão duros a discutir à centésima, quando não à milésima, a situação orçamental de países cujas populações empobreceram, emigraram e tiveram de cortar na satisfação das suas necessidades básicas. Isso é uma coisa que as pessoas não compreendem. Incluo-me entre essas pessoas. Mas não sou só eu. Juncker também se inclui. Por isso saudamos a comunicação de Janeiro de 2015, que conclui que o Tratado Orçamental é um conjunto de regras que deve ser alicerçado com inteligência. Por isso, aplicamos com inteligência algumas regras para que o Reino Unido pudesse permanecer na UE. O que pedimos é que as regras sejam claras e iguais para todos. Se somos inteligentes e flexíveis a aplicar as regras relativas ao Estado de Direito que se colocam hoje em alguns estados-membros - e é bom que sejamos flexíveis e prudentes - também sejamos flexíveis e prudentes quando olhamos para a recessão técnica em que a Grécia está mais uma vez mergulhada. É uma desigualdade de tratamento, a ideia, mesmo que infundada, de que há regras diferentes consoante a geografia ou a ideologia dos Governos. Essa ideia seria fatal para a coesão da UE. É preciso contrariá-la.
Como se tem visto, pelas declarações de governantes de outros países (Schauble, Enda Kenny), a União Europeia é muitas vezes palco para as agendas nacionais. Um Estado endividado, como Portugal, pode ser um bode expiatório?
Não acredito. A ideia de que Portugal pudesse servir de bode expiatório, ou ainda mais grave, de sinal de aviso para outros, é uma ideia tão horrível, tão sinistra, tão maquiavélica, que um ministro dos Negócios Estrangeiros o que pode dizer sobre ela é o mesmo que São Tomé: Só vendo. Não acredito. Mas era o que diziam essas tais fontes anónimas, que o que estava em causa era Espanha. Não é aceitável, que o Orçamento português seja visto pensando na situação política em Espanha, qualquer que ela seja. Não posso acreditar que essa ideia seja verdadeira.
Já falou com Marcelo Rebelo de Sousa?
Não posso responder, mas é público e notório que a reunião sucedeu. O Presidente eleito falou com vários ministros, seria incompreensível que nesses ministros não estivesse o dos Negócios Estrangeiros. Mas a razão pela qual não respondo é que sei qual é o meu lugar. Não sou eu que tenho de dizer quando falo com o Presidente, é o Presidente, o incumbente ou o próximo, que o têm de dizer, se entenderem e quando entenderem.
Conta com mudanças na actuação do principal partido da oposição, o PSD?
É um bocado difícil, por razões compreensíveis. Os dois partidos de direita estão numa fase de transição, até de suspensão. O CDS porque vai escolher uma nova liderança, o PSD porque tem a mesma liderança. É patente o processo de ajustamento em curso no PSD, o que posso dizer é que aguardo com todo o respeito o desenlace desse processo.
Então, qual é o significado da proposta de António Costa de convidar o PSD a consensos?
Eles já existiram, continuam a existir e é muito importante para o país que continuem a existir. É evidente que a política externa portuguesa é de largo espectro político-partidário. Em relação a todas as prioridades há um consenso que atravessa todo o Parlamento. Se retirarmos das prioridades da política externa a questão, única e sensível do Atlântico Norte, o apoio é unânime.
Há mudança do PCP e do Bloco em relação à Europa?
Aconteceram muitas coisas históricas no último semestre. Diria, sem querer ser ofensivo para ninguém, que a política portuguesa se caracteriza por a esquerda estar a mexer e a direita não. Isto foi evidente na campanha eleitoral [das legislativas], mais pela parte do Bloco que sempre foi um partido por uma outra Europa, mas houve também um aggioarnamento do PCP que pessoalmente saúdo. Em relação a estas prioridades há leituras diferentes, mesmo entre PS e PSD há leitura diferente das prioridades à UE, à ligação norte-atlântica, aliás o meu juízo pessoal é que é preciso reforçar essa ligação. Entre o PS e o PSD na justiça, segurança interna, defesa nacional, política europeia, política externa, no comprometimento com a União Económica e Monetária… os consensos não são só potenciais mas absolutamente necessários.
Passos Coelho é um obstáculo a esses consensos?
Se é um obstáculo ou um trunfo compete aos militantes do PSD decidir. Qualquer líder do PSD é o interlocutor legítimo e merece todo o respeito.
Como ouviu Passos Coelho dizer que quando deixou o Governo o Banif dava lucro?
O problema do Banif não era de gestão, o Banif fez um esforço muito importante de redução de encargos, de agências, de pessoal, de ajustamento às novas condições de mercado e de mudança da sua estrutura accionista. O problema era de responsabilidade do accionista. Havia um accionista principal, o Estado, que tinha a maioria do capital a partir do momento em que o Banif se capitalizou com fundos públicos, que ignorou olimpicamente as dificuldades do banco e viveu com o chumbo sucessivo de pelo menos sete, há quem diga oito, planos de reestruturação apresentados na Direcção Geral da Concorrência da UE e não cuidou de acudir a esse problema que era seu como accionista. A verdade dos factos é que o PS tomou consciência de um problema significativo com o Banif após as eleições no período de reuniões entre partidos para a constituição do novo Governo.
Quando António Costa se referiu a surpresas?
Exactamente. Foi a ainda ministra das Finanças [Maria Luís Albuquerque] que veio dar o nome à coisa e dizer “há um problema com o Banif”. Mesmo aí, era um problema e, passadas três semanas da tomada de posse, percebemos que tínhamos o problema, o grande problema.
É legítimo concluir que a forma de resolver esse grande problema resultou de uma enorme pressão de Bruxelas?
Não. É legítimo concluir que a forma de resolver o problema foi a melhor possível tendo em conta as regras existentes, as regras que passariam a ser aplicadas a partir de 1 de Janeiro [normas da resolução da banca europeia] e o tempo. A solução de um problema bancário com estas restrições não pode necessariamente ser óptima.
Há risco de “espanholização” da banca portuguesa como advertiu Francisco Louçã?
Não sei se há risco de “espanholização”. Do nosso ponto de vista, há uma condição sine qua non para a estabilização do sistema financeiro português que é a permanência da Caixa Geral de Depósitos (CGD) como banco integralmente público. Essa é uma garantia muito forte face a quaisquer riscos de perda do poder de decisão nacional sobre a nossa banca. Não tenho uma concepção nacionalista nem acho que o capital estrangeiro seja por natureza mau, distingo entre capital produtivo – as empresas que estão cá para ficar – e os nómadas, os fundos que vêm apenas para comprar agora e vender depois, para fazerem o máximo dinheiro no mínimo tempo possível. O ponto essencial é que, ao contrário do que sectores importantes da direita defenderam, a permanência da CGD em mãos públicas é absolutamente essencial para uma regulação judiciosa do sistema bancário português.
Vê perigo para economia portuguesa que o Novo Banco seja comprado por uma entidade espanhola?
É uma questão a acompanhar com muito cuidado e o actual Governo decidiu adiar até Agosto de 2017 o prazo para a sua solução. O pior são soluções apressadas.
Na Europa há uma concentração bancária incentivada pelo Banco Central Europeu. Isto afecta-nos?
Alguma consolidação (bancária] vai ser necessária, é preciso acompanhá-la com cuidado para evitar efeitos nefastos para a economia e as famílias. As responsabilidades do Estado são assumidas pelo Banco de Portugal mas o Governo tem de acompanhar e ver até que ponto a dinâmica da consolidação mantém protegidos os interesses da economia e das famílias.
A UE está a jogar a sua sobrevivência com o Brexit e o drama dos refugiados?
A Europa está a viver uma profunda crise existencial em quatro planos. Os que referiu e outros dois: a radicalização política no interior da União, a vulnerabilidade da fronteira de segurança face ao terrorismo global, e a coesão europeia em matéria económica. Se continuarmos só a olhar para orçamentos e descurarmos a economia e o emprego vamos ter cada vez mais pessoas a votarem nas extremas-direitas com agenda social, com a qual têm muito mais votos do que com a agenda racista e xenófoba habitual. Dito isto, já assisti a três ou quatro crises existenciais da Europa. A crise de 1989 não foi menos desafiante porque era uma nova avenida que se abria e podia ser percorrida com entusiasmo. Hoje é um pouco mais depressivo.
As relações da Rússia com o Ocidente não abrem, também, uma zona de incerteza?
Há uma zona de incerteza que pode ser gerida porque a NATO e a Rússia têm uma ameaça comum, o terrorismo não estatal e das forças terroristas que já se organizam quase como Estados. Essa ameaça comum representa uma necessidade e também uma possibilidade para que o diálogo dos países da NATO e da UE, de um lado, e a Rússia se restabeleça. Para isso, é muito importante que todos sejamos muito racionais, prudentes e inter compreensivos na gestão da crise no Médio Oriente. Há ali um barril de pólvora.
O que tem falhado?
Se Putin continuar a pensar que a Síria representa uma oportunidade para fazer subir a sua popularidade interna como restabelecedor da dignidade da Rússia ofendida em 1989 e 91 e esquecer que a ameaça comum é mais importante do que essa política. Isso tem derivadas em vários aspectos, nos nossos filhos, amigos e em nós mesmos. Há ataques em cidades onde estão pessoas comuns a divertir-se, a fluir das suas cidades. Acho que os russos também compreendem isso. Mas do lado da UE e da NATO há a necessidade de não alinhar numa escalada retórica que faça relembrar os termos da guerra fria. Tem sido essa a posição de Portugal: não se pode tratar a Rússia como se a Rússia não fosse a Rússia e não existissem interesses comuns. Tem de se manter a pressão sem excessos e sem provocações que, a mais das vezes, vêm de Moscovo. O Ocidente tem de olhar para a Rússia como um país que está existencialmente sempre em tensão entre o seu lado europeu e o seu lado não europeu. O Ocidente europeu tem toda a vantagem em dialogar com a Rússia que sempre foi europeia.
Quanto à base das Lajes, em que direcção trabalha o Governo?
Portugal não pode substituir-se à administração norte-americana. Já tive a oportunidade dizer aos Estados Unidos, através do seu embaixador em Lisboa, que a ligação entre os dois países é essencial para Portugal e este Governo quer reforçá-la. Que essa relação vai muito mais longe do que a base das Lajes, a cooperação inclui a área da Defesa mas também há a cooperação tecnológica, científica, económica e política, pois às vezes há a tentação de pensar, em Lisboa e em Washington, que o único que nos liga é a base das Lajes. Disse ao embaixador que, contudo, a base era um problema em relação ao qual Portugal tem interesses e os Estados Unidos responsabilidades.
Quais os pontos que considera que a nova visão estratégica da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] deve contemplar?
Todos os membros da CPLP pensam que é a altura, e aí não há nenhuma singularidade portuguesa, que o já feito, estabilização da concertação entre Estados ao nível político-diplomático, promoção da língua e cooperação multilateral tem de estender-se à sociedade civil e à cidadania. Através de programas de mobilidade de estudantes e professores, da maior facilidade de reconhecimento de habilitações e qualificações profissionais, da maior facilidade na concessão de vistos, no nosso ponto de vista nos limites do acordo de Schengen. Avanços na portabilidade de direitos de pessoas que circulam entre países da CPLP. Outro nosso contributo, é enriquecer o estatuto de país observador associado. Outra sugestão é que a CPLP olhe também para os falantes de português que não vivem nos países da CPLP, não apenas as comunidades da diáspora mas as que, por exemplo, na Ásia Oriental têm como língua de herança ou materna o português.