Queixas de racismo e discriminação em manuais escolares

Pais queixam-se de lengalengas que falam do “preto da Guiné” ensinadas a meninos do 2.º ciclo. E de poemas de autora premiada, vistos como racistas. Autora nega. Plano Nacional de Leitura vai analisar o caso. Ministério da Educação não respondeu directamente às queixas.

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Fernando Veludo/NFACTOS

Na terça-feira, Matilde, de sete anos, estava em casa a fazer os trabalhos de casa, a ler em voz alta um poema que seria estudado na escola no dia seguinte. Parou numa linha: “H é a Helena, é preta, diz que é morena”. Ela, negra, sentiu-se ofendida e discriminada racialmente, conta a mãe, Nina Vigon Manso. “Isto é feio. Isto não se diz. Isto ofende”, disse Matilde à mãe, segundo contou ao PÚBLICO Nina Vigon Manso.

Automaticamente, Matilde pensou em outros colegas de turma da escola, em Lisboa, não brancos: que também eles se sentiriam ofendidos. Depois conversou com a mãe sobre o que fazer quando lhe pedissem para ler em voz alta o poema: saltar aquela linha? Falar baixinho?

No dia seguinte, Nina Vigon Manso, cientista social, falou com a professora. O poema acabou por não ser lido até agora, segundo Matilde. Na altura, Matilde também parou noutra frase: “E é a Eva, olha o rabo que ela leva”.

O poema, Abecedário sem juízo, é de Luísa Ducla Soares, uma autora de cerca de 140 obras para crianças várias vezes premiadas, incluindo o Grande Prémio Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra em 1996. É um excerto do livro A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca, primeira edição de 1990, pela Teorema, e mais recentemente pela Porto Editora. Está incluído no manual escolar O Mundo da Carochinha – Português 2.º ano, de Carlos Letra e Miguel Borges, editado pela Gailivro. É recomendado pelo Plano Nacional de Leitura (PNL).

Autora premiada diz que é humor
Nina Vigon Manso, de 40 anos, começou por fazer um post no Facebook, indignada com o que se passou. Esta não foi a única queixa de racismo em manuais escolares portugueses feita esta semana.

Noutro post do Facebook, Ana Vaz, de 36 anos, a viver em Cabo Verde, contou que a sobrinha estudava pelo Livro de Fichas Alfa – Português – 2.º Ano, de Eva Lima, Nuno Barrigão, Nuno Pedroso, Vítor da Rocha, edição Porto Editora (2015), quando se confrontou com o seguinte exercício: “Lê as seguintes lengalengas. Coloca os Acentos nas palavras onde faltam/ Truz Truz/Quem é?/É o preto da Guiné.../ O que traz?/ Café.” O livro é usado em Portugal.

Ana Vaz, que trabalha na área da comunicação institucional ligada ao desenvolvimento, enviou uma queixa à Provedoria de Justiça em Portugal pelo “conteúdo de carácter discriminatório e racista” do exercício. Na queixa, expressa a “indignação, enquanto encarregados de educação, com este tipo de referências num material didáctico, pelas implicações que este tipo de conteúdos tem na formação pessoal das crianças”. É “guineense de nascença, portuguesa de nacionalidade adquirida e cabo-verdiana também por descendência”, diz ao PÚBLICO.

Outra situação de discriminação étnica denunciada por um dos membros do SOS Racismo, Mamadou Ba, foi um livro da Porto Editora com a letra de uma canção de José Cid e do Quarteto 1111, A Lenda de El Rei Dom Sebastião: “Ciganos vindos de longe/Falcatos desconhecidos/ Tentando iludir o povo/ Afirmaram serem eles/ El Rei D. Sebastião/E que voltava de novo”.

Nina Vigon Manso recebeu depois mais uma queixa sobre Poemas da Mentira e da Verdade, também de Luísa Ducla Soares, uma variação do poema que a filha estudava, onde se pode ler: “X é o Xavier, usa roupa de mulher/ C é a Camila com corpinho de gorila/ G é o Gonçalo, já hoje levou um estalo/ I é a Inês, a dar beijos num chinês.” O livro é recomendado pelo PNL para o 3.º ano.

Agora exige que os textos sejam retirados das salas de aulas. “Não são leituras recomendáveis para crianças. Vivemos em pleno séc. XXI. Racismo não deve ser tolerado nem transmitido através de manuais escolares. Nem crimes como bullying, homofobia, body shaming e outros. As escolas são espaços de formação pessoal e cívica, promoção e protecção de projectos de vida, criação de princípios e valores baseados em igualdade e inclusão total.”

Ao PÚBLICO, Luísa Ducla Soares, de 76 anos, recusa qualquer intenção discriminatória no poema e diz-se "perplexa" com as acusações: “Não tem conteúdo racista. Também podia dizer ‘é loira, diz que é ruiva’. Sempre me bati, ao longo da minha vida, contra o racismo.” Justifica: “Em vários dos meus livros  apresento mensagens claras sobre causas que defendo mas noutros gosto de brincar com as palavras, com o nonsense, de cultivar o humor que consegue trazer para a leitura muitas crianças que de outra forma a ela não aderiam. O texto citado é um Alfabeto sem juízo que, como o nome indica, é uma brincadeira com o alfabeto que fiz após várias crianças me terem dito que detestavam o alfabeto e se recusavam a decorá-lo. Rindo com ele, sem mensagens nem preconceitos, elas aderem a este texto e fazem, elas próprias, alfabetos fantasiosos, alguns cheios de graça e imaginação. Nunca alguém me disse que tais alfabetos tivessem dado lugar a bullying". E refere que até escreveu uma história onde uma menina negra assume o orgulho de o ser no poema Negra e outro poema que se chama Meninos de Todas as Cores. "Toda a vida lutei pela liberdade, pelos direitos humanos, sou sócia-fundadora do Instituto de Apoio à Criança, publiquei livros para os mais novos contra o racismo e diariamente nas escolas faço o elogio da diferença".

PNL reconhece que poderá ferir sensibilidades
Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Educação (ME) não respondeu directamente à questão sobre se considera os referidos manuais apropriados como material de ensino. A assessoria de comunicação disse apenas: “A selecção dos manuais e textos a trabalhar pelos alunos é da responsabilidade das escolas, competindo a diferentes serviços do ME aferir a sua adequação científica e pedagógica. As listas de leituras recomendadas são actualizadas regularmente com os contributos recebidos de diferentes entidades. O ME entende que os materiais didácticos devem ser considerados como recursos para a promoção da cidadania e da igualdade, área em que se iniciou já trabalho conjunto com o gabinete da SECI – secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade.”

Do lado do PNL, o comissário, Fernando Pinto do Amaral, disse que aquele órgão não tem qualquer intervenção na escolha de manuais escolares, mas que irá colocar a questão sobre a permanência do livro nas listas do PNL na próxima reunião da comissão de selecção, em Abril. “A Luísa Ducla Soares é uma autora cuja qualidade literária é amplamente reconhecida e muitos dos seus livros constam das listas do PNL. No caso deste poema, reconhecemos que alguns dos seus conteúdos poderão ferir a sensibilidade de certas crianças em certos contextos.”

Por seu lado, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que preside a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, respondeu através da assessoria do ministro Adjunto, de quem depende, dizendo apenas que “não foi apresentada ao ACM qualquer queixa sobre estes manuais” e que o “gabinete da secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade está atento a todas as formas de discriminação”.

Gailivro leva assunto a MNE, Porto Editora recusa acusações
Esta não é a opinião da Porto Editora. Num email em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação da editora recusa a ideia de que “estes textos, por fazerem referências a outras etnias e povos, promovem o racismo, ignorando o contexto em que são usados”. E acrescenta: “Jamais consideraríamos a hipótese de veicular ou promover quaisquer conteúdos racistas ou de outra índole que contrariem os princípios fundamentais pelos quais regemos a nossa actividade e que são os mesmos que estão consagrados na Constituição e na Carta dos Direitos Humanos”.

Por outro lado, a Gailivro reconhece que, “apesar de, para esta faixa etária, ser muito comum o recurso aos poemas do absurdo ou humorísticos como mote para exercícios de produção escrita expressiva, compreendemos que possam não ser do agrado de alguns leitores”. Segundo o gabinete de imprensa, irá “contactar o Ministério da Educação e a instituição de ensino superior responsável pela acreditação do manual, para que ambas as entidades reflictam sobre a adequação do poema e a sua continuidade, ou não, no manual escolar”. Segundo “a legislação em vigor”, acrescentou, “os autores e os editores não podem fazer qualquer alteração a um manual certificado sem obter autorização prévia do Ministério da Educação."

Mas justifica: “Cada verso do poema Abecedário sem juízo associa uma letra do abecedário a um “verso sem juízo”. Por ser “sem juízo”, cada verso espelha de forma lúdica algo inesperado ou absurdo ou incorrecto. A interpretação a fazer do poema deve ter por base que se trata de rimas “sem juízo”, como o próprio título indica, e que os comportamentos esperáveis, lógicos e correctos não são os patentes nos versos, mas os seus opostos”.

Nina Manso, que recebeu a mesma resposta da Gailivro enviada ao PÚBLICO, comenta: “Sexismo, misoginia, gozar com o corpo de uma pessoa. Sendo cada vez mais frequente nos dias que correm ambientes hostis e de bullying nas escolas portuguesas, manuais escolares com conteúdos deste teor são, indubitavelmente, questionáveis. (…) Quais são os conteúdos programáticos e objectivos pedagógicos associados a estes textos? Que mensagens estão a ser transmitidas? A minha filha sofre bullying nesta escola. Sofre racismo. É assediada por uma colega: 'Porque os pretos têm mais urina e tens de ir mais vezes à casa de banho'. Qual será a reacção desta colega ao ler estes textos? 'G é de Gonçalo, e hoje já levou uma chapada'? E o Gonçalo da turma? Não passará a ser gozado? 'E o S é de Sara, ela tem dez borbulhas na cara'? 'I é de Inês, ela dá beijos num chinês'? E as crianças de ascendência chinesa, o que sentem ao ler esta frase?”

No SOS Racismo aparecem frequentemente queixas sobre conteúdos “curriculares racistas e colonialistas”, diz Mamadou Ba. Alerta, comentando os casos específicos: “Este material é obviamente impróprio para qualquer projecto curricular que valorize e respeite a diferença. Além de altamente racista, é profundamente reaccionário. A permanente fixação sobre as particularidades fenotípicas e culturais das comunidades ciganas e negras nos manuais, na produção de saberes sobre elas, e a forma como são representadas são estruturantes do racismo neste país e revelam quão estrutural é a ciganofobia e negrofobia na nossa sociedade. O racismo cultural é uma ideologia e está implícita e explicitamente em todo o lado e vai passando pelos pingos da chuva, infelizmente!”

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