“Qualquer oscilação pode esboroar o OE como um castelo de cartas”
Cecília Meireles, vice-presidente da bancada do CDS, sustenta que o Orçamento é “frágil” e rejeita entendimentos com o Governo. Como membro da comissão de inquérito ao Banif e antes da do BES, a deputada não poupa a supervisão e defende que chegou a hora de "mudanças a sério".
Deputada desde 2009, Cecília Meireles, 38 anos, defende que o “normal” é António Costa fazer consensos com a “esquerda radical”. A antiga secretária de Estado do Turismo e actual membro do núcleo duro da direcção ainda liderada por Paulo Portas considera que o Orçamento repõe rendimentos mas que os retira em aumento de impostos.
Numa moção ao congresso de 2013, defendia a subida do salário mínimo e a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores. Por que é que o CDS é agora tão crítico deste Orçamento?
Ainda bem que me faz essa pergunta porque se está a criar a ideia de que este Orçamento é de reposição de rendimentos e que o CDS não quer a reposição dos rendimentos. Isso é completamente falso. É o contrário disso e essa moção é prova disso. O primeiro aumento do salário mínimo quando termina o programa de ajustamento, logo que possível porque isso estava no memorando, é feito pelo CDS e pelo governo de então onde estava o CDS e o PSD. Da mesma forma que a reposição de rendimentos no que toca às pensões, com o fim da CES e os cortes das pensões abaixo dos 4600 euros, foi feito em 2015. O início da reposição dos salários da Função Pública foi feito já no início do ano passado. Aquilo que separa os partidos não é entre os que querem a reposição de rendimentos e os que não querem. É entre aqueles que querem a reposição, como o CDS, de forma gradual, realista e para sempre, e aqueles que, de forma muito pouco realista e instável, podem levar a que num ano estejamos a discutir reposição de rendimentos e noutro ano a discutir cortes. Aquilo que nós não queremos que aconteça. Acho que este Orçamento nos mostrou isso de uma maneira muito prática. Porque de facto repõe uns rendimentos, por um lado, mas que depois os retira por outro.
Retira menos...
Impostos são retirar de rendimentos. Não é apenas os impostos mas aquilo que são as contribuições obrigatórias.
Mas o que é retirado é menor...
Não, não acho. Se fizer as contas vai perceber que os dois lados estão mais ou menos equilibrados. Aliás, não é por acaso que a UTAO [Unidade Técnica de Apoio Orçamental] diz que o Orçamento é de contração. Precisamente porque quis fazer tudo a correr, tudo ao mesmo tempo, criou um tal ambiente que depois levou a medidas de austeridade extraordinárias e ao facto de termos um Orçamento, que ainda não foi votado na generalidade, e já estamos a discutir se há medidas adicionais ou não. Isso é que é uma política que põe em causa, por um lado, os rendimentos e por outro lado o crescimento económico e a maneira sustentada de fazer aumentar o rendimento das pessoas.
Esta recuperação de rendimentos é justificada pela dignidade humana. Isso não deveria ser partilhado pelo CDS?
A linha de recuperação dos rendimentos é partilhada pelo CDS. Aliás, chamou e bem a atenção, esse assunto foi discutido numa moção que tem anos. Aquilo que aconteceu durante o período de ajustamento foi um memorando, um pedido de ajuda que Portugal tinha feito. Acho, aliás, que os rendimentos foram postos em causa por termos tido políticas muito insensatas no governo entre 2005 e 2011 que conduziu à crise financeira.
Nos impostos indirectos sobre o consumo é possível fugir, enquanto os cortes nos salários são incontornáveis. Não é preferível a primeira opção?
Não estamos a falar de impostos pequeninos, estamos a falar de muito dinheiro. Estamos a falar em ir buscar muito mais dinheiro às contribuições sociais que é aquilo que os trabalhadores descontam para a Segurança Social. Estamos a falar de impostos sobre os produtos petrolíferos. Dir-me-á que as pessoas podem gastar menos gasolina e andar menos de carro. Primeiro esse aumento tem impacto no custo dos dos transportes públicos e depois há a questão óbvia: como é que as mercadorias chegam às prateleiras dos supermercados? Isso chega através de transportes que são feitos com combustíveis. O Governo diz que pode haver um benefício fiscal mas ninguém sabe como vai funcionar. Em compensação, o aumento já cá está. Isto tem impacto porque as pessoas não podem escolher não comprar, por exemplo, bens alimentares que tenham aumentado. Isso vai afectar o seu rendimento disponível. Os impostos indirectos são sempre socialmente mais injustos porque tributam todos por igual e não cada um em função do seu rendimento. Os impostos directos tributam mais quem tem mais e menos quem tem menos. Aliás, cerca de metade dos contribuintes não pagam IRS porque os seus rendimentos não chegam a determinado patamar. Mas pagam impostos indirectos.
Não é contraditório o CDS votar contra este OE quando apoiou o “enorme aumento de impostos” do anterior Governo?
Não, não é contraditório. Quando se aponta essa contradição esquece-se um pormenor, mas que é bastante grande. É que nós estávamos no plano de ajustamento. O que estava do outro lado da balança era haver, de facto, um segundo resgate e de entrarmos num clima sucessivo de resgate sobre resgate.
Disse que o Orçamento está preso por arames. Que dificuldades antevê?
Vejo muitas. Primeiro todo o processo. Começámos com um esboço – creio aliás que essa expressão se referia a isso – depois tivemos as negociações, tivemos o orçamento e que já tem uma errata substancial. Há muita coisa por explicar. Nós começamos com uma primeira fase de anúncio das medidas agradáveis e que resultam dos acordos com os partidos que viabilizaram este Governo. Depois temos um primeiro anúncio em que começamos a perceber em que há um outro lado: aumentos de impostos. E acabamos com Orçamento em que do lado da receita há um esforço brutal e não dá a entender de onde vem a receita. Por exemplo, o aumento das contribuições sociais de 900 milhões de euros. Este aumento vem de onde? Quem é que o vai pagar? Outro exemplo: A questão da Função Pública, há uma poupança de 100 milhões de euros com menos 10 mil funcionários públicos. Como é que essa poupança se vai verificar este ano e o que vai acontecer com essas pessoas? E as 35 horas? Não se percebe se vai ou não para a frente e se é para alguns trabalhadores ou para todos. Não explica se tem impacto orçamental – e tem, claro – e depois há vários ministros a dizer coisas diferentes sobre isto. Tudo isto é de facto muito frágil. Temos uma previsão de crescimento económico que de uma semana para a outra passou de 2,1 para 1,8%. Qualquer oscilação, por pequena que seja, pode fazer esboroar este castelo de cartas.
Que factores podem ser esses?
Pode acontecer muita coisa. É isso que me parece preocupante. É que o Governo e a coligação que o apoia voltaram a colocar Portugal numa situação de risco. Dos 10 ou 20 factores essenciais em que assenta o Orçamento – as previsões, as despesas com juros, a execução da receita, a execução da despesa - basta que um corra mal para que as consequências sejam imediatamente graves.
Quer concretizar?
Basta por exemplo que a previsão de determinadas receitas falhe para que os resultados sejam afectados. Como o Governo colocou o país no olho do furacão dos mercados financeiros, podem ter que ser tomadas medidas adicionais.
O Governo eliminou o quociente familiar que era uma medida querida ao CDS, mas o partido não se tem insurgido contra isso. A medida falhou?
Não, de todo. Primeiro grande mérito. O CDS lutou por essa medida durante mais de dez anos. Hoje em dia não vejo nenhum partido pôr em causa que as famílias com filhos ou com ascendentes a cargo devam ser fiscalmente tratadas de forma mais justa e diferente em relação às outras.
Mas o Governo diz que as famílias com mais rendimentos acabam por ser beneficiadas...
Já lá vamos. Mas até esta medida existir nunca ouviu ao PS dizer que as famílias com filhos tenham de ser tratadas de forma diferente. O quociente familiar é dividir o rendimento pelas pessoas que vivem dele e faz-se com uma ponderação de 0,3%. O PS sempre teve a ideia, que é puramente ideológica, que podemos descontar um filho como uma despesa como se fosse um curso ou despesa à habitação, mas que não pode contar como mais um elemento do agregado familiar. São diferentes maneiras de ver a coisa. Há muita propaganda nisso, como em tudo neste Orçamento. O PS, como não é capaz de combater a ideia ideologicamente, depois inventou esta fórmula de fazer diferente. Acho que não faz sentido.
A não devolução da sobretaxa de IRS este ano é uma machadada nessa promessa da recuperação gradual de rendimentos?
Não. O que aconteceu é que a receita dos impostos que estava em causa para a devolução – o IRS e o IVA – não evoluiu como era esperado e por isso não foi possível que esse crédito fiscal fosse utilizado.
Essa não foi uma estratégia de comunicação que falhou?
Na altura, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais [Paulo Núncio, do CDS] disse, se bem me lembro, que o método de apuramento utilizado pode não ter sido o melhor. Acho que me parece uma avaliação sensata.
Qual é a viabilidade temporal que este Governo tem?
Não sou nada dada a prognósticos em política, sobretudo quando dependem muito pouco dos dados que conheço. Se formos analisar a solidez ou a sustentabilidade das suas propostas, acho que é muito pouca. Por outro lado, a vontade de permanência no poder é muito forte. Se há coisa de que este Governo já deu mostras é que está disposto a muita coisa para se perpetuar no poder, mesmo fazer coisas como este Orçamento. Um Orçamento não é uma manta de retalhos, embora este pareça sê-lo, mas é um todo. E estes partidos são todos responsáveis pelo Orçamento e pela sua viabilização.
Se o apoio do Governo à esquerda vier a falhar – e isso pode acontecer já em Abril com o Plano de Estabilidade – o CDS estaria disposto a viabilizar o Executivo?
É muito evidente que o nosso caminho é diverso, e é em muitas coisas, quer do ponto de vista prático quer das razões que o justificam. Acho que houve um resultado eleitoral em que a força política vencedora era a força de que o CDS fazia parte. Há aqui três, quatro partidos que se comprometeram a formar um Governo, a sustentar um Governo e a que ele fosse estável e viável. Vão ter de estar à altura dessa responsabilidade. Temos visto muitas medidas populares, por um lado, e muita desresponsabilização por outro. A partir de agora deixa de ser assim e é essa responsabilização que se espera.
Os acontecimentos do pós-legislativas de Outubro retiram margem ao CDS para viabilizar o Governo?
Há uma divergência de fundo. Tem alguma coisa a ver com o passado mas tem sobretudo a ver com o futuro. As ideias que temos para Portugal são muito diferentes. Não só no imediato nesta questão do gradualismo, mas também no crescimento económico que é baseado no consumo fomentado pelo Estado. É um modelo todo feito à volta do Estado. O que o CDS defende é um modelo fomentado de forma uma harmoniosa entre consumo, investimento e exportações. E que é sobretudo sustentado nas empresas e nos agentes privados da economia. O PS fez um caminho que é muito no sentido da esquerda radical e que se afasta do CDS.
O primeiro-ministro tem defendido a necessidade de consensos. O CDS está disponível?
Acho que o primeiro-ministro tem tentado encontrar consensos de forma muito selectiva, ou seja, consensos que não nos incluíssem. Os que tentou encontrar foram sempre com a esquerda radical. O que vejo como normal é que ele continue esse caminho porque foi a sua escolha. Temos de falar é o que está em cima da mesa. E o que conhecemos torna muitíssimo difícil qualquer consenso porque as divergências são muito profundas.
Os problemas com os bancos continuam. O que é que está a falhar?
O sistema financeiro é dos assuntos que vejo com maior preocupação porque os casos sucedem-se. Acho que temos um problema muito sério de supervisão. Muitas das coisas foram identificadas na comissão do BES. Na altura estávamos em fim de legislatura e não me pareceu muito sensato legislar em cima de um caso, mas agora chegou a hora de olharmos com olhos de ver para esse assunto. Vamos ter mais uma comissão de inquérito sobre o BANIF, é bom que tudo se apure nessa comissão. Independentemente disso começamos a ter tantos casos concretos que alguma coisa a sério temos de retirar da supervisão. Porque ela pura e simplesmente não tem funcionado. O seu objectivo é garantir a estabilidade do sistema financeiro e isso pura e simplesmente não tem acontecido.
É um problema apenas de legislação?
Não, mas pode ser resolvido por via legislativa. É um problema que passa muito também pela cultura das instituições e pela cultura dos supervisores. Uma das coisas que é sistematicamente identificada, e no caso do BES foi flagrante, é a falta articulação entre os três supervisores financeiros [Banco de Portugal, Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e Autoridade de Seguros de Portugal]. Temos três supervisores e eles não contactam uns com os outros. Acho que está na hora para mudanças a sério nesta matéria. Acho que é preciso passar uma mensagem muito clara de que o país não está mais disposto a isto.
Com esta separação do PSD e a saída de Paulo Portas, o CDS pode voltar a ser o partido do táxi?
Não. Acho que não corre esse risco. Fazer política é sobretudo - e vale a pena fazê-lo – lutar por aquilo em que acreditamos. Acho que nos temos de centrar, não em fazer contagens, mas em lutar pelas nossas ideias e lutar para que elas façam o seu caminho. Quando isso acontece, e no CDS tem acontecido muitas vezes, a questão da contagem deixa de fazer sentido. Estou no CDS há quase 20 anos. Ouvi muitas vezes dizer que havia esse risco nunca o vi materializar-se.
Como é que deve ser a relação do CDS com o PSD. Deve ser amigável mas distante ou tenderá a tornar-se hostil?
A tendência não é para uma relação com hostilidade. O CDS é oposição ao Governo e aos partidos que apoiam o Governo. Isso para mim é claro como água. O CDS e PSD são partidos diferentes, com caminho diferentes, com ideias diferentes em muitas coisas. Já mostraram que, quando é preciso encontrar consensos, e isso é bom para Portugal, não é um problema chegar a esse entendimento.