Um compromisso político ou um exercício vazio?
“Gosto do optimismo dele”, comentou John Kerry ao saber que o seu homólogo russo estimara em 49% as hipóteses de sucesso do acordo internacional sobre a Síria.
Sábado foi dia de brincar às percentagens na Conferência de Segurança de Munique. Questionado sobre as possibilidades de sucesso do acordo para pôr fim à violência entre o regime sírio e a oposição que o próprio assinou na madrugada de sexta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, respondeu: “49%”. Os jornalistas, escrevem as agências de notícias, fizeram a mesma pergunta ao ministro alemão, Frank-Walter Steinmeier, que respondeu “51%”.
Um pouco depois, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, comentou com a imprensa que tinha ouvido falar dos “49” de Lavrov. “Gosto do optimismo dele”, disse.
Há cinco anos que o conflito sírio se arrasta e há muito tempo que as palavras perderam o sentido. Houve “linhas vermelhas” impostas (e esquecidas) ao regime, como o uso de armas químicas, negociações sem fim em que cada lado interpretava o que era dito e acordado segundo os seus interesses e no sentido exactamente oposto ao que outros diziam.
Por mais que o cinismo reine com justa causa, todos os 17 membros do chamado Grupo Internacional de Apoio à Síria assinaram um texto onde se determina o envio “imediato” de ajuda humanitária às zonas onde esta é mais urgente e “a cessação nacional das hostilidades” no prazo de uma semana.
A quase impossibilidade de levar estas medidas do papel à prática é evidente, num país onde combatem dezenas de facções que contam com diferentes apoios externos e as alianças vão mudando de acordo com as conveniências, mesmo se houvesse uma boa vontade genuína de todos os envolvidos. Mas os responsáveis políticos que estiveram nas negociações podiam pelo menos tentar levar-se a sério.
Norte-americanos, franceses e britânicos repetiram sábado que a Rússia, que lançou em Outubro uma campanha aérea na Síria a pedido de Bashar al-Assad, tem de parar de bombardear a “oposição legítima” a pretexto de estar a combater o Daash (autodesignado Estado Islâmico). “A Rússia está a alvejar deliberadamente civis na Síria e, por isso, tem de pagar um preço”, afirmou mesmo o ministro da Defesa britânico, Michael Fallon.
Ora, se para Assad todos os que se lhe opõem são “terroristas”, os russos também não têm distinguido os alvos na sua campanha de apoio ao líder sírio. E se o acordo assinado deixa de fora da “cessação das hostilidades” o combate a organizações consideradas terroristas, é possível que na prática nada mude nas acções de Damasco e Moscovo.
“Isto parece uma proposta de cessar-fogo. Mas na verdade é uma licença para matar”, afirma o analista libanês Nadim Shehadi, citado pelo site Business Insider. Se os diferentes grupos que combatem Assad têm de aceitar deixar de o fazer e Assad e os seus aliados podem continuar a “combater o terrorismo”, o mais certo é que o regime continue a agir como até aqui a pretexto de que está a fazer isso mesmo.
O texto de Munique sublinha a urgência humanitária, quando centenas de milhares de pessoas correm o risco de morrer à fome em várias cidades e localidades sob cerco onde a ajuda não consegue chegar. “A maioria dos sírios estão sitiados por rebeldes, não por Assad”, afirmou Lavrov. Ora, de acordo com a ONU isso não é verdade: ao todo, há muito mais civis encurralados pelo regime e nas seis áreas que se enumeram no acordo como prioritárias, três estão cercadas por forças leais a Assad; duas por diferentes grupos da oposição e numa, Deir Ezzor, o cerco é imposto por combatentes do Daash e o aeroporto continua sob controlo do regime.
No dia em que deveriam ter começado a discutir com os EUA as modalidades de concretização do fim das hostilidades, a Rússia enviou um navio de patrulha armado com mísseis de cruzeiro para o Mediterrâneo – segundo a agência de notícias RIA-Nostovi, o Zelioni Dol, desde Dezembro integrado na frota do Mar Negro, vai a caminho da Síria e poderá juntar-se à campanha russa no país.
Noticiado de imediato como um acordo de cessar-fogo, o texto de Munique nunca o foi. Um cessar-fogo normal seria assinado pelo regime e pela oposição e teria de ser monitorizado e confirmado por observadores independentes. Mesmo assim, acordado tanto por opositores como aliados de Assad (Rússia e Irão), o texto poderia querer dizer qualquer coisa. Um dia depois, parece que talvez não signifique nada.