Letícia pediu um empréstimo ao banco para mudar de sexo: “Agora sou uma mulher”

No bilhete de identidade, tornou-se mulher em 2011. No dia 22 de Janeiro de 2016, o corpo passou a bater certo com tudo o resto. Excertos, na primeira pessoa, de uma conversa com Letícia Santos, 24 anos, quando ainda recuperava da cirurgia de mudança de sexo, de masculino para feminino.

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Letícia Santos, 24 anos, não conseguiu fazer a cirurgia no Serviço Nacional de Saúde Marco Duarte

O doutor construiu-me uma vagina com os tecidos do meu corpo. À partida, a cirurgia correu bem. Daqui a dois ou três meses, se for preciso, dá-se um toquezito, como ele diz. Mas pode nem ser preciso.

Neste momento, aqui nesta cama de hospital, ainda me sinto como uma lagartinha dentro do casulo. Mas já há um peso que se foi. Já posso dizer: “Agora sou igual a ti. Agora sou uma mulher!” E ai de quem diga o contrário, que eu baixo as calças!

Em 2008, princípios de 2009, fui à primeira consulta de sexologia no Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Mas já pesquisava sobre transexualidade desde a adolescência, 12, 13 anos, com a ajuda da psicóloga da minha escola. Quando cheguei ao Magalhães Lemos, explicaram-me como iria ser todo este processo. Seriam cerca de dois anos, disseram, se tudo corresse bem. Três anos, a contar com atrasos, pensei eu... Tudo bem.

Nunca pensei que acabasse por ter de recorrer a um hospital privado e a um empréstimo ao banco. Não pensei endividar-me para me tratar. Tenho um salão de cabeleireiro no Porto. Tive de mandar embora a minha funcionária, a Cidália, que é óptima — mas com a despesa do empréstimo não ia mais conseguir pagar o salário dela.

Na quinta-feira, antes de vir para Lisboa, despedi-me da Cidália, do meu pai e da minha mãe. Apanhei o comboio e vim sozinha. Dei entrada aqui no Hospital de Jesus. A operação começou às nove e meia da manhã de sexta. Durou várias horas [com um enxerto de mucosa do intestino delgado, constrói-se a vagina, os grandes lábios são feitos com parte do escroto, os pequenos lábios são feitos com pele do pénis, o clítoris é feito com parte da glande do pénis].

A vaginoplastia vai custar-me 7500, 8000 euros, ainda não sei ao certo. No banco não disse para o que era o empréstimo. É um empréstimo normal, do género “preciso de comprar umas coisas lá para casa”. Se dissesse para o que era, ainda diziam: “Ai que a mulher bate a bota na cirurgia e nós ficamos com o crédito malparado!” Mais um malparado para as estatísticas!

Mas voltando atrás: no Magalhães Lemos fiz exames. A equipa de lá é fantástica. Também me pediram para fazer a minha história de vida. E fiz. Fazer a história de vida é escrevermos tudo, desde que nos conhecemos como gente. Todos os pormenores. O que sentimos, o que vivemos. Tem de ser mesmo assim, quem quer fazer uma intervenção destas tem de ser bem avaliado para, mais tarde, não ter dissabores.

Não consigo lembrar-me do momento em que percebi... porque sempre fui assim. Eu era criança e dizia para mim mesma: “É por pouco tempo, vais resolver isto, tem calma!” Era a minha defesa. Mas também tive depressões e esgotamentos. Não conheço nenhum transexual que não chore todos os dias.

Seguiu-se o Instituto de Genética, onde fiz um exame de cariótipo, que todos os transexuais fazem, para ver os cromossomas. E, ainda antes de iniciar o tratamento hormonal, fui ao Hospital de Coimbra, para fazer mais uma avaliação, isto em 2010... E correu bem. Depois, mandámos o diagnóstico de [disforia de género] para a Ordem dos Médicos, que tem de autorizar todas as cirurgias de mudança de sexo que se fazem.

Comecei o tratamento hormonal a 4 de Agosto de 2010. O tratamento hormonal faz muita diferença na estrutura do corpo, a pele, o rabo... Em 11 de Julho de 2011 fui tratar do cartão de cidadão para mudar a identidade. O sexo e o nome.

Os problemas só começaram realmente quando chegou a fase das cirurgias na Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. A última vez que estive lá foi em Março de 2013 para fazer novo exames. Supostamente exames para a cirurgia. E também uma consulta de endocrinologia. Disseram-me que se eu fizesse o tratamento hormonal certinho, em Outubro estavam a operar-me... e eu: “Maravilha, quem esperou até agora, não é por mais seis meses...”

Passou 2013, passou 2014, passou 2015. Nada.

Era a dra. Zélia Figueiredo, a psiquiatra do Magalhães Lemos que me acompanhava, que ligava sempre para Coimbra, porque eu enervava-me quando telefonava para lá. Ela fazia-me esse favor de tentar saber quanto tempo mais... mas não tínhamos nenhuma informação.

A espera desgasta-nos muito. Muito. Se em 2016 não conseguisse fazer a vaginoplastia, acho que não conseguia fazer mais. Estava tão cansada de esperar. E não ia acabar bem. Não ia ter um fim feliz. Nunca tinha pensado em semelhante coisa, em pôr termo à minha vida. Mas no último ano, depois de todo este tempo, desestabilizei. Desisti de Coimbra.

Havia algum tempo que comunicava com o dr. Décio Ferreira. E um dia decidi vir ter com ele. Marcámos para 22 de Janeiro, sexta-feira, para fazer a vaginoplastia. Na véspera, na quinta-feira, dia 21, ainda lhe telefonei: apesar do crédito que fiz ao banco ter sido aprovado, tinha havido um atraso e não me tinham creditado o dinheiro na conta, tínhamos de adiar. Mas ele disse-me para vir para Lisboa na mesma, que o dinheiro iria, certamente, ser creditado rapidamente. O dr. Décio é uma pessoa incrível.

Tenho tido sorte com as pessoas com quem me cruzo. No meio do azar, tenho tido sorte. Mesmo as pessoas com quem me relacionei sempre me apoiaram. Juntei-me aos 18 anos, com um homem heterossexual, com quem planeei construir uma família. Sempre foi paciente em relação à operação. “Quando conseguires a operação, consegues”, dizia-me.

Casámo-nos quando eu tinha 20 anos. Mas só durou 11 meses e 15 dias. Divorciei-me. Eu tinha o meu salão de cabeleireiro, dava para ter uma vida tranquila. Ao mesmo tempo estudava. Fiz o curso de cabeleireiro à minha custa. Tinha a minha casa e o meu carro. Ao mesmo tempo fazia todo o processo de transição. Sempre tive objectivos. Ele não tinha tantos...

Depois do meu casamento ainda tive outros dois relacionamentos. Mas a certa altura fiquei muito cansada do: “Eu sou assim, e fiz isto, e isto, e aqueloutro...” Ter de repetir tudo, sempre... E as pessoas sempre a perguntar o mesmo: “Então Letícia, quando é que resolves a tua situação? Quando é a operação?” E eu: “Não tenho nada para dizer, não me dizem nada.” As pessoas até podiam pensar que eu não me queria operar. Tenho estado sozinha.

Uma pessoa assim não consegue ter uma vida. Há muitos homens que conseguem compreender uma situação destas, aguentam algum tempo, mas não muito.

A vagina está ainda um pouco inchada e tenho algumas dores. Quando tenho tosse, parece que os pontos todos vão rebentar. Já tinha falado com transexuais que tinham feito uma vaginoplastia, mas não me explicaram que ia estar seis dias de pernas abertas, que não me ia poder mexer. Não vinha bem preparada para isto.

Mas o que interessa é que o doutor diz que está tudo bem. Na sexta já devo ter alta. E na quinta já queria estar no salão [e nesta quinta, dia 4 de Fevereiro, estava mesmo a reabrir o cabeleireiro].

Tenho falado ao telefone com a minha mãe. No dia da operação entrou em histeria por não ter vindo comigo — ela está a trabalhar. Não se justificava vir.

Mas é claro que me custa estar aqui no hospital sozinha. Uma pessoa pensa em tudo: no empréstimo, nas contas para pagar, no salão que está fechado. Posso contar com a minha mãe. Sempre pude. Mas são muitas preocupações. Devia estar feliz, apenas feliz. Mas penso nisso tudo.

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