Governo quer registar reversões da austeridade como medidas extraordinárias

Modo de contabilização é diferente do que o que está a ser usado pela Comissão Europeia, o que provoca diferenças no cálculo da variação do défice estrutural.

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Mário Centeno prevê um défice de 2,2% do PIB Daniel Rocha

A diferença substancial de estimativas entre o Governo e a Comissão Europeia em relação à variação do valor do défice estrutural em 2016 é um dos principais temas a separar as duas partes e deve-se em larga medida ao facto de o Executivo ter decidido contabilizar como medidas extraordinárias a reversão das políticas de austeridade, como os cortes salariais na função pública e a sobretaxa.

No esboço do Orçamento do Estado entregue na passada sexta-feira em Bruxelas, o Governo aponta para uma redução do défice estrutural – o défice que desconta o efeito da conjuntura económica e das medidas extraordinárias – de 0,2 pontos percentuais durante estes ano. Este valor já fica claramente abaixo dos 0,6 pontos percentuais de redução que tinham sido recomendados a Portugal pelas autoridades europeias em Julho de 2015, como fez questão de assinala esta quarta-feira a Comissão Europeia numa carta enviada ao Governo.

No entanto, a divergência não fica por aqui, porque a forma como o Governo chega ao valor dos 0,2 pontos percentuais gera também ela muitas dúvidas em Bruxelas, com os técnicos da Comissão a chegarem a um valor bastante mais negativo.

A causa por trás desta diferença está naquilo que o Executivo português regista como medidas extraordinárias. No esboço do OE, o Governo inscreve um valor equivalente a 1% do PIB (cerca de 1850 milhões de euros) na rubrica de “medidas extraordinárias e temporárias”. Uma parte muito significativa deste valor, confirmou o PÚBLICO, está relacionado com os aumentos de despesa e as reduções de receita associados à reversão de medidas adoptados durante o programa da troika. Os exemplos mais significativos são a reversão faseada dos cortes salariais na Administração Pública, no valor de 446 milhões de euros, a eliminação parcial da sobretaxa do IRS, que vale 430 milhões de euros, e a reposição de mínimos sociais (como o RSI), num total de 135 milhões de euros.

Nas suas contas, Bruxelas não classifica nenhuma destas medidas como extraordinária e isso faz com que o valor do défice estrutural – onde as medidas extraordinárias não são contabilizadas – apresente um valor bastante mais favorável no caso do Governo do que no da Comissão Europeia.

De acordo com TVI, nas estimativas preliminares feitas pelos técnicos do executivo europeu, o esboço do OE português tem implícito um agravamento do défice estrutural de 1 ponto percentual, um resultado completamente diferente da redução de 0,2 pontos estimada pelo Governo português.

Esta é, por isso, uma das questões centrais na discussão que decorre agora entre as autoridades portuguesas e europeias. Na carta enviada a Mário Centeno, a Comissão Europeia questiona-o precisamente sobre o valor do défice estrutural apresentado.

Do lado do Governo, a argumentação utilizada para a inscrição da reversão da austeridade como medida extraordinária está baseada no facto de, quando as medidas foram aplicadas em 2011 e 2012, terem sido apresentadas como sendo temporárias. Assim, defende o executivo, tanto nesses anos como agora, o carácter temporário dessas medidas deve estar expresso nas contas.

Por exemplo, quando o anterior Governo realizou o corte nos salários da função pública, anunciou que tal medida seria temporária, mas nas contas essa redução da despesa não foi classificada como temporária ou extraordinária. Contribuiu por isso para uma redução do défice estrutural, que como o nome indica deve medir o esforço de consolidação orçamental de carácter estrutural que é feito.

Agora que os salários voltam ao seu nível inicial, o Governo quer registar essa operação como o final de uma medida extraordinária, não contando o aumento da despesa para o cálculo do défice estrutural.

Nas contas que apresenta a Bruxelas, o Ministério das Finanças procedeu a uma revisão do valor do défice estrutural em todos os últimos anos, sendo este agora mais elevado nos anos em que as medidas de austeridade temporárias foram aplicadas e menos penalizado em 2016, quando estas são retiradas.

Resta saber qual será a reacção de Bruxelas a estes argumentos do Governo. Do lado das autoridades europeias nunca foi muito popular a ideia de que as medidas de austeridade eram apenas temporárias, defendendo-se antes que elas deviam ficar com carácter permanente.

As divergências entre Lisboa e Bruxelas não ficam contudo por aqui. Ainda de acordo com a TVI, mesmo no défice nominal (onde todos as medidas são consideradas, sejam extraordinárias ou não) há estimativas muito diferentes, com a Comissão a prever um valor de 3,4% do PIB e o Governo 2,6%. As autoridades europeias esperam também um crescimento de 1,6% na economia, abaixo dos 2,1% projectados pelo Governo.

Esta quinta-feira, em resposta aos jornalistas que o questionavam sobre estas previsões, o comissário europeu Pierre Moscovici afirmou ser "demasiado cedo para falar acerca de números". "É muito importante mantermos negociações estreitas, construtivas e, espero, conclusivas nos próximos dias, com a perspectiva comum de trabalharmos no sentido de que o orçamento português esteja, finalmente, em coerência com as regras do Pacto [de Estabilidade e Crescimento -- PEC] e com os compromissos assumidos por Portugal neste quadro", disse.

Do lado português, o primeiro-ministro disse não acreditar que haja um “problema sério”, revelando que Moscovici lhe assegurou que nesta fase “nada se passa ao nível politico, tudo se passa ao nível técnico”.

Ao mesmo tempo, o líder parlamentar do PS, Carlos César, assumiu que possa haver modificações na proposta orçamental, mas com uma aproximação entre as partes. "Creio que se chegará certamente a um entendimento, a uma aproximação de posições, e pode haver alguma correcção a introduzir da nossa parte, como pode haver e certamente haverá uma aproximação da CE às explicações que o Governo português a todo o tempo está a prestar", disse.

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