Imune às críticas, Dinamarca aprovou confisco de bens aos refugiados
Lei, que dificulta também a reunificação familiar de quem foge da guerra, passou no Parlamento por larga maioria. Iniciativa de Copenhaga é a mais recente pedra na solidariedade europeia.
Fecharam-se fronteiras, ergueram-se vedações e a Europa da livre circulação torna-se cada vez mais uma coisa do passado. Mas nesta terça-feira, um país europeu – a Dinamarca – foi onde nenhum outro tinha ido ainda, decidindo que, de agora em diante, os refugiados terão à chegada de abrir as suas malas, deixar-se revistar e entregar dinheiro ou tudo o que valer acima de dez mil coroas (1340 euros), exceptuando objectos de “elevado valor sentimental”. É a mais polémica das alterações à lei de asilo com as quais Copenhaga quer dissuadir os refugiados de se instalarem no país.
“Muitos [refugiados] perderam tudo e, ainda assim, esta legislação parece querer dizer que os poucos afortunados que sobreviveram à viagem com as posses que lhes restam não perderam o suficiente”, lamentou Isabel Santos, a deputada socialista portuguesa que preside à comissão de direitos humanos da Assembleia Parlamentar da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). “Esta não é certamente a Dinamarca que eu conheço”, disse na última sexta-feira, quando era já certa a aprovação da proposta para endurecer as leis de acolhimento, adoptada nesta terça-feira por 81 dos 109 deputados presentes no hemiciclo.
Há anos que a Suíça confisca aos refugiados montantes acima de mil francos (900 euros) e em dois estados federados alemães querem também cativar dinheiro aos recém-chegados, mas a Dinamarca é o primeiro país a dar força de lei ao arresto e prever buscas sistemáticas. As críticas choveram de todos os lados.
Na imprensa internacional a “lei das jóias” motivou comparações ao saque efectuado pelos nazis aos bens das famílias judias durante a II Guerra Mundial. As organizações internacionais avisaram Copenhaga de que a reforma mancha a reputação humanitária dinamarquesa e mostraram-se sobretudo críticas em relação às mudanças nas condições de acesso à reunificação familiar – só depois de três anos a viver no país um refugiado de guerra a quem esse estatuto tenha sido reconhecido pode pedir autorização para que a sua família se junte a ele na Dinamarca. A resposta ao pedido pode demorar anos e caberá aos refugiados suportar os custos das viagens.
Para o Conselho da Europa, como para o ACNUR ou a Cruz Vermelha, esta disposição pode violar os tratados internacionais de que a Dinamarca foi um dos países promotores e de que é signatária, caso da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Os refugiados, acrescenta a Amnistia Internacional, têm pela frente uma “escolha impossível”. “Ou trazem os filhos e aqueles que lhes são mais queridos numa viagem perigosa, por vezes letal, ou os deixam para trás e arriscam-se a uma separação prolongada enquanto as suas famílias continuam a sofrer os horrores da guerra”.
Mas o primeiro-ministro liberal Lars Rasmussen, que depende do apoio do Partido do Povo Dinamarquês (DF, extrema-direita) para governar, manteve-se irredutível naquela a que chamou “a lei mais mal compreendida da história da Dinamarca”.
Fê-lo porque estava certo de que tinha o apoio da maioria da população – uma sondagem revelou que a crise refugiados é a principal preocupação de 70% dos dinamarqueses – e que, a reboque deste sentimento, conseguiria o apoio do Partido Social-Democrata, o maior da oposição. O resultado da votação desta terça-feira carimbou a cedência das formações centristas ao discurso que até há pouco tempo era exclusivo dos populistas. “Aos que nos criticam, a minha questão é: qual é a vossa alternativa? A alternativa é continuarmos a ser o país mais atractivo da Europa e acabar como a Suécia”, afirmou durante o debate o antigo ministro social-democrata Dan Jorgensen.
O vizinho do Norte, que em 2015 recebeu 163 mil refugiados, proporcionalmente mais do que qualquer outro país europeu, é a referência daquilo que Copenhaga quer evitar. Nos sete meses que leva de governo, Rasmussen cortou em 45% os apoios aos refugiados e fez questão de o anunciar nos jornais do Líbano, país que acolhe mais de um milhão de sírios. A Dinamarca recebeu, ainda assim, mais de 20 mil pedidos de asilo em 2015, uma pequena fracção dos milhares que transitaram pelo país em direcção à Suécia.
A ministra da Integração, Inger Stojberg, foi ao Parlamento Europeu explicar que os bens confiscados serão vendidos para ajudar a suportar as despesas de acolhimento, lembrando que também os dinamarqueses podem ser obrigados a vender bens acima de um determinado montante para aceder a prestações sociais. “As nossas despesas com requerentes de asilo são as segundas maiores da UE, em percentagem do PIB”, disse Stojberg, a governante que deu a cara pela reforma. Kirstian Jensen, investigador na área da Integração da universidade de Aarhus afirma que o propósito do governo é outro. “Poucos o admitem em público, mas o objectivo é criar incerteza entre os refugiados sobre se a Dinamarca é realmente um país acolhedor” e com isso afastá-los, explicou ao site Politico.
E, longe de ser a excepção, a posição de Copenhaga é apenas o último sinal de que a crise de refugiados está a minar a tradição de acolhimento nórdica. A Noruega anunciou recentemente a intenção de reenviar para a Rússia os refugiados que atravessam a fronteira do Árctico e na Suécia o governo social-democrata acabou de atingir o seu pior nível nas sondagens em quase 50 anos, recorda a Reuters. É a ponta de um iceberg de hostilidade que cresce na Europa e que segunda-feira levou os ministros do Interior da UE a admitir excluir a Grécia do espaço Schengen e a repor por dois anos os controlos nas fronteiras. “Os países europeus têm de parar esta deprimente corrida para o fundo e começar a cumprir as suas obrigações internacionais, respeitando os direitos humanos e a dignidade dos refugiados”, avisou a Amnistia.